terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Daqui e dali... Vitorino Almeida Ventura

A BIBLIOTECA ITINERANTE DE
MÁRIO DE JESUS (ALMEIDA)


Há tanto tempo que não me ocupo do Jardim.
Adolfo Luxúria Canibal, in Primavera de Destroços.


Antes ainda das Bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, havia um Homem, no Pombal (aldeia cujo nome provém do culto do Espírito Santo, marginalizado pela própria Igreja), que possuía ao meu tempo de criança e adolescente uma outra Biblioteca… De livros alternativos. O principal acervo era constituído pelos livros da colecção cowboy, proveniente do seu amor pelos westerns do Bem e do Mal a preto e branco,

além dos filmes de espadachins e boxeurs. Sobretudo nas férias, seus livros viajavam entre os jovens e alguns ficavam até perdidos para sempre nessa circulação —como direi? — sanguínea. Mas a esse Homem o que mais lhe interessava era a alimentação espiritual. A dádiva de sangue… (E a tantos convidava a partilhar ‹‹o sangue de Cristo›› que guardava religiosamente engarrafonado!). Tão grande cuidado com aquilo que mais literalmente o padre Bernardo, nas suas exéquias, referiu sobre o des_
cuido com as Almas, nos arranjos dos cemitérios, por contraposição ao Alentejo, desde há muito, um verdadeiro Jardim… Por acaso,

esse Homem era o meu tio materno Mário. Quando baixou ao subsolo,
após a celebração da missa, o padre Bernardo confidenciou-me que vinha ao Pombal em criança assistir a dramas e comédias. Ora,
o principal comediante desses tempos era, sem dúvida pelos relatos orais que colhi de tantos, o meu próprio tio. Aliás, a sua Vida foi mesmo rare_
feita de comédia, com episódios tão interessantes em sua antiga casa-torre de Castelo, como lançar um rádio pela fresta onde se escapava um gato preto só porque o FCP perdera, como ficar a ver o fim-do-mundo num garnisé que bicava as gentes que o visitavam, como andar, bicos de pés, entre os figos secos do alpendre, para não cair ao quinteiro, falhando o passo sobre as tábuas soltas do sobrado… Com ele,

passei das melhores férias da minha vida. Com ele, ainda criança, chorei — nas suas palavras —, ‹‹as lágrimas corriam-me como bagas, cara abaixo››… Quando me contava das brigas intestinas de uma enxada contra um ancinho (sobre quais estremas), que de crimes passionais terminados com viola e guitarra enterradas ambas, como coroas, nas cabeças dos músicos. Ao fim,

sempre reencontrava o riso perto do coração. Dois exemplos. Certo dia, fiquei a saber que a população do Pombal era toda constituída por ‹‹poetas românticos››. Todos se reviam nas quadrinhas de poetisas pé-quebrado que punham cada qual aos ‹‹cornos da Lua››. Outro dia, fomos cantar as Janeiras e ele teve uma discussão enorme com o senhor João Ribeiro (o qual fazia papéis de galã com o meu primo Luís Carlos, nos teatros da época), que insistia em dedicar o último dístico ‹‹na pontinha do fieito, a um rapaz de respeito››, mas o meu tio contrapunha e ao fim do debate fazia mesmo vingar a sua tese,
à porta de quem disse que ‹‹Viva um cristal do céu››. Anos mais tarde,
saiu num jornal que o tal ‹‹rapaz de respeito››, digo, ‹‹cristal celeste››, agora transformado numa espécie de Presidente da Junta do ' Herman Enciclopédia', havia sido a ‹‹estrela da noite›› — pelos seus discursos politicamente correctos e não o teatro que se representava em sua Junta metafórica. Na sua costela brasileira, o meu tio ribombava, como um actor mass-mediático avant la lettre, com a sua premonição tão acertada: ‹‹Sensacional››, enquanto eu pensava nas ironias do Destino…

Hoje, em nome dos utentes da sua Biblioteca, sobretudo dos tantos que lhe não devolveram alguns livros, direi que a sua Última Ceia nos será sempre em andando, referência, um excerto da canção do último álbum de Sérgio Godinho Ligação Directa, 'O velho samurai': ‹‹Há-de ser de nós todos/o seu hara-kiri/seu riso na memória/ainda nos ri››.

Vitorino Almeida Ventura

1 comentário:

Anónimo disse...

CARLOS FERNANDES-POMBAL
Infelizmente nunca vi representar o teu tio Mário, mas tenho para mim que teria sido um bom actor em comédia.
Aliás ficou localmente famoso ao repesentar o papel de "soldado Turíbio" na comédia RESSONAR SEM DORMIR, pois toda a gente mo confirmava quando na década de 70, ainda antes da fundação da ARCPA levamos a efeito essa Comédia em Pombal.
Nesta altura ele assistiu e não deixou de nos felicitar, tendo gostado muito de recordar os seus tempos de mais novo.
Pessoalmente gostava muito de ouvir seus "contentamentos e ou reparos Portistas".
Confesso que não lhe conhecia a disponibilidade de leitura sobre Westerns.
Infelizmente, com ele partiu também uma jovialidade que muito lhe apreciava.
DEUS rir-se-á com ele!