E depois do Festival de Música medieval?
CAMÕES E A TENÇA
Irás ao paço. Irás pedir que a tença
seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce
Em tua perdição se conjuraram
calúnias desamor inveja ardente
e sempre os inimigos sobejaram
a quem ousou seu ser inteiramente
E aqueles que invocaste não te viram
porque estavam curvados e dobrados
pela paciência cuja mão de cinza
tinha apagado os olhos no seu rosto
Irás ao paço irás pacientemente
pois não te pedem canto mas paciência
Este país te mata lentamente
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Um dia, quando falava com o ex-futuro presidente da Câmara de Carrazeda, João Lopes de Matos, percebi (até porque ele já o havia escrito) que uma de suas medidas consensuais na Chefia virtual da edilidade seria pôr termo ao Festival de Música medieval, uma vez que o povo o tinha abandonado há muito… Fiquei surpreendido porque mesmo quando o redigiu, no sentido de apurar da relação custos/benefícios para a população, tirava uma conclusão óbvia, não necessitando de realizar uma de suas projecções para o futuro do Desert(ificand)o. Mas
ainda focava na Câmara e para mim talvez se devesse direccionar as luzes para a outra metade da Organização. Assim, perguntar a Pedro Caldeira Cabral sobre o satisfatório (e não sobre a sua satisfação)… Se a realização do Festival não deveria ter objectivos mínimos: tanto no público, quanto na mudança de mentalidades. Se o amor dele pela Terra, também sua Senhora, não deveria ir além de uma espécie de tença anual tão pouco camoniana (tão longe da mísera cantada por Sophia, em Grades, 1970), acumulando para as Finanças o cachet de Organizador, Director Artístico de alguns grupos e de músico do seu próprio La Batalla, assaz omnipresente. Pergunto
se não seria mais útil, até pelos contactos que o concertista Caldeira Cabral possui, relevar mais ao interesse concelhio, em metamorfosear anualmente num festival diferente (Barroco, Romântico, Contemporâneo…) com outros organizadores, outros Directores Artísticos, outros músicos, para que o repertório se não esgotasse, levando o concelho a Outras Músicas. Mas todos eles, subordinados a objectivos mínimos: tanto no público, quanto na abertura de mentalidades. Para isso, no entanto,
teria de existir uma formação de públicos antecipada, para estar a escuta mais disponível. Como se não descobriu ainda tal vontade,
provavelmente, seria melhor abandonar todos os projectos 'estranhos' (os de música erudita) e cultivar o concelho por um gosto mais próximo do dos cidadãos. Neste contexto, avanço outra proposta alternativa, dentro dos espectáculos a que este ano assisti, apostando na qualidade da seguinte bolsa de novos valores nacionais, reduzindo imenso os custos. Tal proposta acrescentaria também o facto de ser Carrazeda a ajudar a revelá-los (e não o inverso, com meia dúzia de referências nos jornais):
Deolinda (Novo Fado); Mandrágora e Diabo a Se7e (World Music); Tiago Guillul, Clube dos Nadadores de Inverno e João Peludo e a Orquestra Sonâmbula (Pop/Rock). Meros bons exemplos
e não só da Música. Concluí estas semana, como formando, um Curso de Cultura e Pensamento Contemporâneo com Gonçalo M. Tavares e calhou de falarmos, a propósito do Corpo Dilacerado, de Leonor Keil. Ele falava nessa dançarina da companhia de Paulo Ribeiro, de um nível tão alto quanto Pina Bausch. Eu falei que a vi na Serralves, 40 horas Non Stop, fazendo sozinha todas as personagens de Noite de Reis de W. Shakespeare, e não vi apenas uma dançarina, mas uma actriz, uma cantora, sei lá. Eu sei, seccionando o corpo, respondeu-me o Gonçalo, os braços tristes, a cara alegre. Completamente em peças de um puzzle! Alguém as junte…
Vitorino Almeida Ventura
Post Scriptum: Mas estará mesmo Pedro Caldeira Cabral disposto ao próprio 'sacrifício'? Admiro muito as suas colaborações dentro da música popular e a sua obra, sobretudo, em La Batalla, como a pictórica das Escolhidas de sua esposa Graça Morais, mas além de um ou outro espectáculo e exposição efémeros, aquém dos painéis de azulejos na Biblioteca, o que dela ficou por Carrazeda? Para mim, a culpa está de não haver uma política de intervenção: cultural, pedagógica, cívica, repito — não contribuindo para a formação de públicos, melhorando o concelho, através de Cursos, Círculos de Estudos, Workshops… dirigidos a professores e alunos e outros interessados, muito antes dos espectáculos, já que a Organização do Festival, em meu entender, a isso obrigaria (ou mesmo responsabilizaria a). Assim,
tenho por mais essencial o labor de Cristiano (de cujo «currículo» faz parte, felizmente, o ser irmão de Graça Morais…), nos deixando uma Monografia, indo pelas aldeias para as deixar escritas. Dir-me-ão que fazia parte do trabalho e que foi pago a peso de ouro, mas que deixou uma marca bem maior ao concelho, na (transmissão da) cultura,
isso também (me) fica claro.