Carta dum pai a um filho
Chamo-me Douro e tu, Tua, és meu filho, embora poucas semelhanças tenhamos actualmente um com o outro.
Eu estou cheio de barragens e tu não tens nenhuma. Tu ainda és quase totalmente selvagem. Eu estou domado.
Mas eu já fui muito mais selvagem que tu.
Antes de construírem as primeiras barragens na zona de Miranda do Douro, eu corria lá no fundo, indomável, após haver escavado uma garganta profunda de talvez uns cem metros de altura.
E depois, já definitivamente em território português, eu continuava em passo acelerado, aos trambolhões por ali abaixo que era um gosto vencer pedregulhos e declives.
Acho que infundia respeito e, por vezes, medo.
Após as primeiras barragens, eu comecei a ser útil aos homens, que me puseram ao seu serviço. Quando ainda se gastava pouca electricidade, eu sentia-me feliz por dar luz à vida dos humanos. Sabes, temos prazer em sermos prestáveis.
Na restante parte do percurso, continuava a correr, ainda mais velozmente que antes, até porque vinha folgado do descanso nas albufeiras.
Até que apareceu alguém (de nome Camilo, salvo erro), que se lembrou de transportar por meu intermédio os minérios de Moncorvo e o vinho do Porto.
E então começaram a construir barragens, que não só produziam electricidade mas também permitiam que os barcos navegassem em mim com um certo à vontade.
Fiquei fulo com esta mudança mas mais uma vez me deu prazer ser útil.
Mas não é que o homem anda sempre a mudar de ideias!
Os minérios deixaram de ser explorados e o vinho arranjou umas camionetas que o levam directamente do lugar de produção ao lugar de destino.
Estás a ver a minha frustração!
Ainda por cima, os humanos começaram a gastar tanta electricidade, que a que eu produzo já não chega para nada.
Deram-me então outro destino: - o turístico. Outros barcos, que eu não conhecia, começaram a sulcar-me, sobretudo no Verão.
Senti outra vez razão de existir. Mas não têm, nem de longe, aproveitado tudo o que lhes posso proporcionar. É uma tristeza!
O mesmo problema se põe agora contigo.
Por isso não sei o que hei-de dizer-te.
Se ficares como estás, fico orgulhoso de ti. Se te acontecer o mesmo que a mim, nem por isso deixo de te estimar e julgo que passarás a considerar-me mais como pai, porque melhor me passas a compreender.
Uma coisa é certa: - estarei sempre de braços abertos à tua espera.
João Lopes de Matos
5 comentários:
A sua melancolia desaguou na foz do apaziguamento.
Está engraçada a personificação.
Ateu
Foz do Douro. Ponto de encontro deste famoso rio ibérico com o mar.
O seu curso é de 927km, 213 dos quais em solo português, actualmente o Douro está transformado num remansoso lago artificial até Barca de Alva, já sem os seus antigos rápidos como o cachão da Valeira (Carrazeda)e convertido em auto-estrda fluvial.
Manuel Joaquim.
De quando em vez, o doutor Lopes de Matos desoculta a sua verdadeira vocação: a literária, que luta por emergir dentro de si.
De quando em vez, ela se lhe revela, por debaixo da capa civilizada com que se veste o Douro. Gosto mais quando escreve sob os antigos rápidos do cachão da Valeira. Quando a coisa sai domesticada, quando a si próprio se põe barragens, não tanto, confesso.
Admitindo, porém, a sua radicalidade, se tudo lhe é só biologia, não deveria defender o Tua selvagem?
vitorino almeida ventura
Eu não defendo nada.As coisas acabam por se me impôr e a minha vontade nada conta.Parece a muita gente que lutando muito,tudo acaba por acontecer como nós queremos porque atribuem à vontade individual e até colectiva forças que não tem.Claro que atribuo muita força à biologia porque se trata da ciência que estuda a vida e as suas leis.
Mas o papel do homem é controlar a natureza e, para salvar a vida do homem, é preciso por vezes domar a natureza.
Eu nem controlo o homem nem a natureza e sei que grande parte da história é feita da luta entre um e outra.
Sinto o problema e,para mim, as soluções não são fáceis.
Limito-me a aceitar o que vier e seguir em frente.
Já não acredito na militância, embora goste do empenho dos homens na busca de soluções.
JLM
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