quarta-feira, 25 de junho de 2008

Daqui e dali... Maria

O Património do Douro

É ao troar dos tambores e ao estralejar dos foguetes, que me apercebo da ascensão do Douro a Património Mundial da Humanidade.

Num ímpeto, assomo à janela e deparo com o Douro, lá no fundo, envincilhado no turbilhão das suas águas, a correr indiferente à ufania hilariante dos durienses.

Debruçada sobre ele a comoção faz-me marejar os olhos.

Abro o baú das recordações e à minha mente acorrem, em cachoeira, os tempos remotos da meninice, em que o Douro era um misto de revolta surda, maceração e conformismo.

Cada socalco burilado, qual renda de bilros, a ferro, a pá e a picareta, com o suor e lágrimas dos que necessitavam de mitigar a fome e a dos seus rebentos.

O refrigério da divinal bebida de Baco e as cantigas entoadas pelas alcantiladas encostas entalhadas no xisto (mais parecendo gritos lancinantes de amargura), onde o sol ufanamente se mirava, ajudava-os a arrostar o espinhoso trabalho de emprenhar as videiras que, em setembro, as vindimadeiras mutilavam sem comiseração.

Espadaúdos e esquálidos homens, pois os mais débeis a Mãe Natureza se encarregava de suprimir logo á nascença, a troco de um mirrado soldo, alojamento e alimentação indignos, carregavam às costas ladeira acima, quais bestas de carga, grandes cestos vindimos acogulados com os frutos desentranhados das videiras em pranto, para serem lançados no moinho da tortura onde se transfiguravam no precioso néctar, denominado “vinho fino ou vinho generoso”, para fausto apenas de alguns e opróbrio de tantos outros.

Enclausurado em grandes pipas de carvalho e castanho.

Transportadas em frágeis barcos rabelos de velas enfunadas pelo vento, timonados por afoitos e martirizados homens, que manejavam com mestria e destreza a espadela, lá iam embalados pela cadência do rio, tantas vezes sobressaltados pelo espreguiçar mais tumultuoso dos seus cachões, ancorar no cais de Gaia onde, a pretexto de lhe vestirem finas roupagens, o obrigavam a renegar a sua origem apelidando-o de “Vinho do Porto”.

E foi este o Douro, de labuta e sofrimento insanos, que presenciei na infância.

Felizmente, longe vão esses menos afortunados tempos. Mas não podemos conhecer bem o presente ignorando o passado. Então, a melhor maneira de homenagearmos esses macerados Homens e Mulheres do Douro de antanho é partilharmos com o Mundo este Maravilhoso património, que eles com tanta abnegação nos legaram e ajudaram a erigir mercê do seu penoso e esforçado trabalho.

Maria

Património do Douro”, foi o título dado pelo Jornal de Notícias, quando o publicou na “Página do Leitor”, em 11 de Janeiro de 2004 (pág. 40).

Nota: As fotografias são de paisagens na Senhora da Ribeira em 1965. Fotos tiradas por Dr. Luís Pires de Castro e cedidas por Dr. Sebastião Ribeiro

5 comentários:

Anónimo disse...

Bonito texto.

Parabens!

Carlos - Pombal

Unknown disse...

É sempre muito agradável ler um texto que tão maravilhosamente sabe,no seu admirável bucolismo,aliar o passado e o presente, que mais parece,tudo junto, o percurso perene do homem neste vale mágico do Douro.
JLM

Anónimo disse...

Texto fabuloso. Faz-nos quase sentir o sentir dos homens e mulheres do Douro de outros tempos.

Anónimo disse...

Parabéns pelas fotos fantásticas!

Anónimo disse...

Parabéns ao responsável do blog. De fazer inveja a outros blog's.