Nasci no concelho de Carrazeda em 1941.
Tenho, desde então, acompanhado, não passo a passo, a evolução ao longo dos anos.
Nasci num tempo em que apenas na vila havia energia eléctrica, melhor, iluminação eléctrica.
Nessa altura, eram poucas as estradas e todas medíocres.
Não havia televisão e os rádios foram aparecendo muito a conta-gotas. Os jornais contavam-se pelos dedos.
O isolamento das pessoas era quase total: - o mundo resumia-se à aldeia em que viviam, às aldeias vizinhas e à sede do concelho.
As condições de vida nas casas eram paupérrimas: - convivia-se com o frio, o fumo, as pulgas, os percevejos, os piolhos, as moscas, os ratos. Dormia-se em colchões de palha e o frio, de noite, era dominado por muitos cobertores (quem os tinha) a pesarem sobre o corpo.
Não havia hábitos de higiene. A água canalizada ainda vinha longe. A convivência com os animais era feita em pé de igualdade.
A economia consistia no amanho das terras, quase no estrito limite do necessário à sobrevivência.
As hortaliças vinham das hortas que quase todos tinham. O azeite vinha das oliveiras alcandoradas nos montes. A água vinha das fontes, muitas de chafurdo, transportada à cabeça pelas mulheres. Alguns proprietários faziam algum dinheiro, vendendo parte da sua produção de batatas, cereal ou vinho.
Havia, claro, pequenos comerciantes ou negociantes que conseguiam rendimentos superiores aos dos demais.
O utensílio mais importante era a enxada, sobretudo para os que necessitavam de vender algumas jornas para sobreviver.
Se tivesse que definir aquele tempo através de uma imagem, essa seria, sem dúvida, a de um cavador, no fim do dia, a recolher a casa, vergado sob o peso da enorme enxada que o derreara durante o dia.
Este tempo, que vinha já de séculos e séculos de sofrimento e penúria, manteve-se, praticamente sem alteração, até aos anos sessenta.
Com a guerra do Ultramar e a emigração, as pessoas começaram a sair dos seus tugúrios e, perdendo o medo, ganharam querer próprio e aventuraram-se ou foram obrigados a aventurar-se no desconhecido.
O retorno ao local de nascimento, que se mantinha incólume, era impossível e daí a debandada definitiva.
As hortas desapareceram bem como tudo o que representava o modo de vida do passado.
Os que ficaram tentaram novas saídas, muitos acreditaram que era possível o regressar ao viver de antigamente.
Mas o que se tem verificado é o abandono, que nunca mais termina, dos lugares e valores sagrados que ligavam o homem à terra.
Temos velhos (muitos), jovens (poucos) e uma economia que não permite empregos relativamente estáveis e minimamente remunerados.
Têm surgido elementos estranhos (imigrantes) que revitalizaram um tanto estas paragens.
Veio muito dinheiro da emigração, houve desenvolvimento, melhoria de vida.
A economia (sectores primário, secundário e terciário) tem que sofrer uma mudança radical para que possam ser aproveitados os novos utensílios e para que sejam criados empregos que permitam um modo moderno de viver e conviver.
Será que as pessoas acreditam que a enxada voltará a ser rainha, escravizadora dos seres humanos?
É necessário que aumente a população para que as organizações administrativa, educacional, religiosa, etc., (modernizadas) se mantenham.
De contrário, tudo o que é público terá que reduzir-se na sua dimensão, além de poder ocorrer que muitas coisas desapareçam totalmente.
As organizações humanas não existem (ou não são significativas) no deserto.
João Lopes de Matos
4 comentários:
Uma vez mais a argúcia nos dois últimos parágrafos.
As entrelinhas do Deserto e de que provavelmente não faz sentido um duelo ao sol pôr entre os últimos cowboys que restam, para que a Morte nos seja mais próxima, mas uma Junta de Salvação Nacional, onde todos caibam, antes que o Governo, com a foice administrativa
nos venha integrar noutro maior do que nós. E nos dissolver sob as últimas gotas de chuva. Pelo menos, não sejamos nós a justificá-lo...
Vitorino Almeida Ventura
Bela imagem que nos faz reviver o passado. E do passado nos podemos orgulhar, com todos os defeitos e virtudes, ricos e pobres. O futuro é algo mais complexo, que quem pode não quer e quem quer não encontra eco, para as suas preocupações. Hoje vive-se mais,e procura-se fugir a responsabilidades e à solidariedade para com os outros.MBP
O que fascina em manuel pinto é o seu orgulho pelo passado. Só se desconhece a percentagem dos factores: qual a das pulgas, a dos ratos, a dos percevejos, a dos lençóis de palha, a do isolamento, a dos cobertores de papa para no fim dar cem por cento de orgulho puro.
J. C.
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