quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Daqui e dali... João Lopes de Matos

CARRAZEDA
Nasci no concelho de Carrazeda em 1941.
Tenho, desde então, acompanhado, não passo a passo, a evolução ao longo dos anos.
Nasci num tempo em que apenas na vila havia energia eléctrica, melhor, iluminação eléctrica.
Nessa altura, eram poucas as estradas e todas medíocres.
Não havia televisão e os rádios foram aparecendo muito a conta-gotas. Os jornais contavam-se pelos dedos.
O isolamento das pessoas era quase total: - o mundo resumia-se à aldeia em que viviam, às aldeias vizinhas e à sede do concelho.
As condições de vida nas casas eram paupérrimas: - convivia-se com o frio, o fumo, as pulgas, os percevejos, os piolhos, as moscas, os ratos. Dormia-se em colchões de palha e o frio, de noite, era dominado por muitos cobertores (quem os tinha) a pesarem sobre o corpo.
Não havia hábitos de higiene. A água canalizada ainda vinha longe. A convivência com os animais era feita em pé de igualdade.
A economia consistia no amanho das terras, quase no estrito limite do necessário à sobrevivência.
As hortaliças vinham das hortas que quase todos tinham. O azeite vinha das oliveiras alcandoradas nos montes. A água vinha das fontes, muitas de chafurdo, transportada à cabeça pelas mulheres. Alguns proprietários faziam algum dinheiro, vendendo parte da sua produção de batatas, cereal ou vinho.

Com vida à parte e independente do resto da comunidade , estavam as quintas do Douro.
Havia, claro, pequenos comerciantes ou negociantes que conseguiam rendimentos superiores aos dos demais.
O utensílio mais importante era a enxada, sobretudo para os que necessitavam de vender algumas jornas para sobreviver.
Se tivesse que definir aquele tempo através de uma imagem, essa seria, sem dúvida, a de um cavador, no fim do dia, a recolher a casa, vergado sob o peso da enorme enxada que o derreara durante o dia.
Este tempo, que vinha já de séculos e séculos de sofrimento e penúria, manteve-se, praticamente sem alteração, até aos anos sessenta.
Com a guerra do Ultramar e a emigração, as pessoas começaram a sair dos seus tugúrios e, perdendo o medo, ganharam querer próprio e aventuraram-se ou foram obrigados a aventurar-se no desconhecido.
O retorno ao local de nascimento, que se mantinha incólume, era impossível e daí a debandada definitiva.
As hortas desapareceram bem como tudo o que representava o modo de vida do passado.
Os que ficaram tentaram novas saídas, muitos acreditaram que era possível o regressar ao viver de antigamente.
Mas o que se tem verificado é o abandono, que nunca mais termina, dos lugares e valores sagrados que ligavam o homem à terra.
Temos velhos (muitos), jovens (poucos) e uma economia que não permite empregos relativamente estáveis e minimamente remunerados.
Têm surgido elementos estranhos (imigrantes) que revitalizaram um tanto estas paragens.
Veio muito dinheiro da emigração, houve desenvolvimento, melhoria de vida.
A economia (sectores primário, secundário e terciário) tem que sofrer uma mudança radical para que possam ser aproveitados os novos utensílios e para que sejam criados empregos que permitam um modo moderno de viver e conviver.
Será que as pessoas acreditam que a enxada voltará a ser rainha, escravizadora dos seres humanos?
É necessário que aumente a população para que as organizações administrativa, educacional, religiosa, etc., (modernizadas) se mantenham.
De contrário, tudo o que é público terá que reduzir-se na sua dimensão, além de poder ocorrer que muitas coisas desapareçam totalmente.
As organizações humanas não existem (ou não são significativas) no deserto.
João Lopes de Matos

4 comentários:

vitorino almeida ventura disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
vitorino almeida ventura disse...

Uma vez mais a argúcia nos dois últimos parágrafos.

As entrelinhas do Deserto e de que provavelmente não faz sentido um duelo ao sol pôr entre os últimos cowboys que restam, para que a Morte nos seja mais próxima, mas uma Junta de Salvação Nacional, onde todos caibam, antes que o Governo, com a foice administrativa

nos venha integrar noutro maior do que nós. E nos dissolver sob as últimas gotas de chuva. Pelo menos, não sejamos nós a justificá-lo...

Vitorino Almeida Ventura

Unknown disse...

Bela imagem que nos faz reviver o passado. E do passado nos podemos orgulhar, com todos os defeitos e virtudes, ricos e pobres. O futuro é algo mais complexo, que quem pode não quer e quem quer não encontra eco, para as suas preocupações. Hoje vive-se mais,e procura-se fugir a responsabilidades e à solidariedade para com os outros.MBP

Anónimo disse...

O que fascina em manuel pinto é o seu orgulho pelo passado. Só se desconhece a percentagem dos factores: qual a das pulgas, a dos ratos, a dos percevejos, a dos lençóis de palha, a do isolamento, a dos cobertores de papa para no fim dar cem por cento de orgulho puro.
J. C.