sexta-feira, 2 de julho de 2010

Daqui e dali... Carlos Fiúza

Saramago – a Obra

E Deus PODERIA ter dito:
- Teu nome será Populus e de ti e em ti assentará a minha descendência. Lavrarás a terra em meu Nome e dela e do teu suor alimentarás teus irmãos … e terás rebanhos e canseiras, tudo em minha Honra.

- Tu te chamarás Petrus e sobre ti erguerei a minha Igreja. Terás honrarias, mas guardarás e zelarás os rebanhos de teu irmão … os alimentarás, os tosquiarás e de seu leite e de sua lã farás ostentação, tudo em minha Glória.

- E eu? E eu?

Deus olhou aquele ser enfezado, doentio, quase insignificante, e sem mais benesses para distribuir disse:

- Tu, o mais refilão, o mais irrequieto, servirás de reflexão a teus irmãos. A tua missão será a de questionar os seus e os Meus desígnios. Não tenho nome para ti, mas ficarás conhecido como o “novo Caim", por amor a Mim.

E PODER-SE-IA ter feito o que Deus PODERIA ter dito …E assim, por milénios, a Lua se transfiguraria em quatro … por milénios o Sol voltearia no espaço … por milénios as Estrelas guardariam tão estranhas determinações.

Entretanto Populus cresceria em labor e canseiras … esgatanhando a terra!...
Petrus engordaria, prosperaria como Igreja … e da lã dos rebanhos do irmão teceria os mais finos paramentos!...O outro, amadureceria anónimo … carregando o anátema de ”Caim do Senhor”!...

Ab abrupto, a OBRA nasce …E com ela nova oceanicidade nos é oferecida … ao sabor dos ventos de um Nobel, prémio maior de toda a Literatura ...E a Língua portuguesa, a nossa “Ditosa Língua nossa Amada”, com Saramago retorna aos quatro cantos do Mundo, levando mais um pouco de nossa Arte e Engenho a todas as civilizações …

Severo mas intensamente poético, José Saramago foi, sem dúvida, no dizer de um seu crítico, "Um dos últimos titãs de um género literário que se está a desvanecer”.

A intenção da sua Obra é apresentar, à luz do “sentimento”, um contraste entre a “aristocracia” ociosa e o “povo”, pilar e feitor da História. São as tão conhecidas “lutas de classes,” a sua tão querida metáfora marxista.

A sua crítica a uma Igreja “opressiva” e ao serviço dos “opressores” perpassa em quase toda a sua Obra e foi, não por acaso, o início de uma tentadora iniciação à “destruição do religioso", como fenómeno “castrador de massas".

É, também, a defesa do seu arreigado iberismo, mormente o papel “desagregador” de uma Europa que se pretendia unida.A sua “Jangada de Pedra” é isso mesmo … metaforicamente vê a Península Ibérica (qual jangada) a “soltar-se” dessa mesma Europa e à procura da “velha” Europa, qual nova América.

Bem como a sua visão de um Cristo que já não se revê em Deus, seu Pai …

É, igualmente, a sua pergunta constante: o que é o Cristianismo, porque terá o Homem de morrer em sofrimento? Em nome de quê, ou de quem?

E se, por vezes, as suas figurações são suaves, qual reminiscência da “frauta pastoril”, outras tantas são violentas, qual eco de "caserna militar" romana.

Quantas vezes a interpretação, o protesto, a tese, ficam sumidos, esquecidos … a culpa é do “domínio” da beleza formal e da Arte com que o Autor dá conceção aos seus poemas em prosa.

Mas Saramago vai mais longe:

- A “História do Cerco de Lisboa” assenta na figura de num obscuro “revisor de textos” que, com o acrescentar de um simples NÃO mudaria todo o sentido histórico.- Ou, ainda, em “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, em que questiona o “papel” de Deus, pondo Cristo a insurgir-se contra Ele, ou seja, contra o seu próprio destino.

Páginas admiráveis de sagacidade em que se entremeiam na narrativa profundos pensamentos do Autor, plenamente irmanados em toda a evocação intuitiva do romance.

A expressão de tais pensamentos (todos os pensamentos de todas as suas obras) é feita em fino estilo, de grande “majestade”, pleno de imagens grandiosas … dir-se-ia em estilo “bíblico”.

Ao ler Saramago, o leitor encontrará “suavidade” aqui, “impetuosidade” acolá ...Descrições encantadoramente originais, harmonia, ritmo, melodia, estilística, povoam as suas páginas.

Urbi et Orbe, a História anotará:

“Aos dezoito dias do mês de junho, do ano da Graça do Senhor de dois mil e dez, morreu, suavemente, na sua casa de Lanzarote, um ESCRITOR, um PENSADOR, um PORTUGUÊS”.

E Deus, em toda a sua magnanimidade, PODERIA ter dito:

- ECCE HOMO!

Como o não disse, e em seu lugar, digamos (com Camões):

“... Ditosa Pátria que tais filhos tem!”

Carlos Fiúza

4 comentários:

Unknown disse...

Belo, Carlos.Por alguma razão,foste sempre o melhor,como diz o Diogo.
JLM

Anónimo disse...

E PODER-SE-IA ter feito o que Deus PODERIA ter dito …

se Deus por um qualquer desígnio não estivesse omisso na frase.

C.F.

Anónimo disse...

Tão omisso estava deus na(s) frase(s), que o final do emblemático romance "Memorial do Convento" termina assim, desta maneira soberba, tão soberba que lhe servirá de epitáfio, juntamente com as suas cinzas, perto de uma oliveira da sua própria terra, num pequeno jardim a ser construido em frente à Casa dos Bicos (Fundação J.S.): "Mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia".
Parabéns aos saramaguianos que aqui tão bem se mostram.
h.r.

Unknown disse...

Maravilhoso texto, Carlos Fiúza. Não posso dizer-lhe mais do que isto: gostava de o ter escrito. Obrigado.

Fernando Gouveia