quarta-feira, 30 de junho de 2010

Daqui e dali... João Lopes de Matos

José Saramago – o homem
Era uma vez um homem (já não é, já morreu) que nasceu em 1922, num lugarejo chamado Azinhaga, a quem puseram o nome próprio de José (como o pai) e o último apelido de Saramago, alcunha ou apelido de família, porque era comum nesse tempo as pessoas não terem um nome completo tão bem definido como agora. Sorte a dele, porque, de contrário, teria ficado conhecido apenas por José de Sousa.

Este “Saramago” é o dedo do destino a salvá-lo de ter um nome corriqueiro, como a “Sócrates”, este vocábulo o salvou de ter um nome mais banal.
Pois este Saramago, ao que tudo indica, veio ao mundo, dotado pelos pais ou por Deus (nós não somos todos dotados da mesma maneira) de uma inteligência, uma força de vontade, um génio, uma perseverança, uma capacidade de trabalho, um feitio, uma teimosia, fora do comum. Apetrechado destes atributos, meteu-se à vida.
Nasceu num lugar recôndito, mas o pai conseguiu fazer-se polícia (ou fizeram-no, talvez por não ser burro, ser bem comportado e ser talvez salazarista – conditio sine qua non). E, em virtude disso, o pai rumou a Lisboa, para onde mais tarde levou a família. O rapaz, a princípio, não se portou mal: estudou o que pôde ou o que o mandaram estudar e terá sido talvez (nos meus juízos guio-me pela probabilidade mais forte ou pela maior verosimilhança) salazarista como o pai e como eu próprio fui até aos 16 anos.
Mas ao rapaz, chegado a uma certa idade, deu-lhe (quem houvera de dizer) para começar a ler, a ler, a ler, e nunca mais parou. E, ainda mais raro, começou a interrogar-se (e a interrogar os outros) sobre tudo o que lia. Foi irreverente, teve vários ofícios, e um dia (com toda a probabilidade) começou a ler o Soeiro Pereira Gomes, o Alves Redol (como ele, do Ribatejo) e começou a acreditar num paraíso (para todos) na terra, já que não consta que tenha até aí pensado muito num paraíso (para todos) num outro mundo (celestial).
A certa altura fez-se membro do partido comunista, por acreditar que com ele atingiria a felicidade para todos (na terra). Foi já como militante do PC que entrou na revolução de 25/4.
E, logo de seguida, mal nos habituáramos à liberdade, os comunistas pensaram chegada a manhã libertadora e igualitária para todos. E quiseram chegar lá através da via (ditadura do proletariado) consagrada por Marx e, sobre tudo, por Lenine, para não falar de Estaline, que era querido às escondidas e não querido em público.
Esta maré passou-a ele (Saramago) como director do D.N.. E deixou-se levar pelo forte querer de construir rápido um mundo melhor (nisto não era original, pois desde Cristo que os cristãos o tentam conseguir, aliando-se ao poder (Roma), constituindo eles o poder (Idade Média) e recorrendo a meios que nem ao Diabo lembram (a Inquisição deliciou-se com o fogo do inferno a queimar os hereges).
Pois Saramago, em 1975, bem aconselhado pelos camaradas legítimos (os trabalhadores manuais e não só), tornou-se sectário, expulsou os indignos do mundo novo, fez trinta por uma linha, até que ele próprio foi expulso. Ainda lutou no Alentejo pelos desígnios anteriores: trabalhou numa UCP, conversou, conviveu, delirou. E isto numa altura em que os ventos já apontavam fortemente noutra direcção.
Caíu em si, isolou-se, leu, estudou, percorreu o país, e decidiu fazer-se escritor (aquilo que havia escrito até aí já lhe dava alguma esperança de sucesso). E começou por contar a história dos alentejanos, com quem convivera tanto tempo, num estilo na esteira de Soeiro Pereira Gomes, de Alves Redol e tantos, tantos outros, que tiveram as suas primícias literárias no chamado neo-realismo.
E não é que fez uma obra tão bela (literaria e tematicamente) que até a Câmara de Lisboa (de Cruz Abecassis ) lhe reconheceu o mérito e lhe deu um prémio? Escreveu logo de seguida “O Memorial do Convento” e a aceitação geral foi excelente.
Curioso: - num país ortodoxo, conseguiu impôr-se com uma escrita heterodoxa. E continuou a afirmar-se comunista, numa teimosia (ou coerência) próprias de um Salazar, um Hitler, um Cunhal, um Estaline.
Mas a sua esperança num mundo igualitário esfumava-se a cada dia que passava: - a derrocada das “democracias” de Leste, a agonia de Cuba, a viragem para o capitalismo da China, o extremismo da Coreia do Norte.
E então começou a procurar outra via: o Cristianismo e a sua majestática organização, a Igreja Católica. E que viu ele? - O Papa e os cardeais vestidos de ouro, apoiados embáculos de ouro, com cruzes de ouro ao pescoço, vestidos de modo inteiramente desadequado dos tempos actuais. Além disso, passam o tempo com rezas, ladainhas, persignações, julgando que Deus gosta dessas lenga-lengas, desses rituais, esquecendo-se que Este talvez preferisse que a Ele se chegasse pelo amor entre todos.
Pensava que a máxima comunista – de cada um segundo as suas capacidades a cada um segundo as suas necessidades - pudesse ter uma versão cristã, através do espírito de dádiva e de abnegação, que são indubitavelmente apanágio do Cristianismo.
Desiludido, deixou-se de intermediários e questionou directamente Deus e a sua doutrina.
Mas encontrou uma parte dos livros santos que lhe provocou muitos engulhos: o Velho Testamento, onde ele via um Deus que infundia medo, mais que amor, que agia a seu bel-prazer, do qual os humanos tudo aceitavam por Deus poder fazer o que lhe desse na real gana.
E então Saramago concluiu: - Deus, se Tu és isto, então desculpa, não existes. Nós somos apenas, como Tu dizes: - pó, terra, cinza e nada.
E, nesta indagação e luta, morreu. Afirmou-se sempre comunista por aquela dita razão cega da coerência, porque quis continuar a acreditar no paraíso para todos, para não dar parte de fraco e porque não queria ser considerado um arrependido.
E optou por aquilo que é terreno e passageiro, não eterno. Optou, porque, como dizem os cristãos e dizem os existencialistas, o Homem é livre e, sobretudo, livre de decidir.
Decidiu mal, Saramago? Se Deus existe, Deus já lho disse. Porque só o juízo de Deus interessa, não o de homens banais como somos todos nós (ainda que alguns sejam Papas, Cardeais, Ministros ou Secretários).
João Lopes de Matos

8 comentários:

Anónimo disse...

Boa resposta ao Tribunal da Santa Inquisição e ao Cardela Vermelho do blog vizinho...
Ass. Estaline Laranja

Anónimo disse...

Bravo, João
Análise escorreita e lúcida do percurso de um Escritor coerente, nem sempre consensual...mas por acaso Português.
Efectivamente foi tudo isso e muito mais:
- Foi o homem sempre dado à luta, contra todos os ventos e marés, concorde-se ou não com o seu ideário;
- Foi o Homem que teve a coragem de afrontar o "nacionalismo" por se sentir traído na sua honra;
- Foi, enfim, o opositor ferrenho de um tipo de "igreja" que ele considerava "castradora".
Valham ou não os seus pensamentos doutrinários, a sua estiística perdurará, e é o que me interessa.
Pela frontalidade, os meus parabéns ao Homem; pela coragem a minha homehagem ao Lutador; pela OBRA, os meus agradecimentos ao Pensador.

Carlos Fiúza

Anónimo disse...

Esta última parte, a partir da questão directa a Deus e à sua doutrina funda-se numa especulação filosófica e até literariamente mui-muito interessante, se se não ofendesse com o(s) termo(s). No entanto,

é um pouco redutora, meu caro. Centra-se na leitura de Caim pelo Velho Testamento e «esquece», entre outros, ao Evangelho segundo Jesus Cristo, onde se foca um humano em missão sobre-humana.

Vitorino Almeida Ventura

Post Scriptum: Não achei muito feliz a comparação do apelido com Sócrates, uma vez este «se sentir cada vez mais só a governar o país», enquanto Saramago viu no Além (dirão os arautos da Igreja) os seus livros aumentarem exponencialmente a procura, alargando o seu «mercado». E, ao menos para esses, no diálogo com os novos e velhos leitores, estará simbolicamente mais vivo do que... Mas voltando atrás: para a Santa Madre Igreja é essa, nos céus, a verdadeira vida! Os marxistas e os exencialistas que (n)os deixem sonhar...

Anónimo disse...

Texto magnífico!
Grande nível!

Anónimo disse...

Sim, concordo plenamente: textos magníficos e de nível, os de João, Carlos e Vitorino. E afirmo-o sem qualquer reserva, tal a minha admiração (ligação a) por Saramago (como por Camus, Sartre e outras veias Existencialistas...). Mas sobretudo pelo Post Scriptum de Vitorino, comme d'habitude...

h.r.

vitorino almeida ventura disse...

Só tenho pena (ao lado do sobre tudo de JLM) de que h. r. não desenvolvesse também um pouco mais.

Folgo que me aprecie, des_
socraticamente.

Ab.,

Vitorino

Unknown disse...

Logo que vi o meu texto transcrito no blogue,pedi(ia a dizer:dei ordens)ao proprietário para emendar duas palavras,além de outros pormenores de somenos importância:sobretudo para sobre tudo,emenda já efectuada, e embáculo para em báculo,correcção ainda por fazer.
Não fazem ideia quanto me custou a suportar,nestes dias de calor,o sobretudo.
Báculo será um cajado, neste caso o cajado dos pastores da Igreja.
Também se deveria corrigir espírito para espíritos de dádiva e abnegação.
Caro H.R.: Escusa de tomar posição pelo VAV pois os três já decidimos que o "caput scholae" será o Carlos,que é o mais velho e a velhice é um posto.
JLM

Anónimo disse...

Caríssimo JLM, relativamente ao "caput scholae", se v. o diz, só terei que concordar e endereçar os respectivos
parabéns a Carlos (que gostaria de conhecer).
Quanto a VAV, ainda bem que não desenvolvi Saramago, pois ele acaba de o ser brilhantemente (desenvolvido) pelos VAV e Carlos. O muito que teria a dizer dele (tive de o estudar na UTAD com uma fanática saramaguiana), não cabe num espaço com estas características.
Ah, gostei daquela do "dessocraticamente...".
Cumps.
h.r.