Eu não sei se concordarão comigo, mas sempre me afoito a dizer o que estive cogitando e passo a demonstrar:
- A verdade nua e crua é muitas vezes inimiga da poesia. Refiro-me à verdade científica, inimiga da imaginação.
Os antigos eram muito mais poetas do que nós hoje somos, quando, por exemplo, olhamos para o céu através das lentes da ciência.
Que poesia há em olhar, fria e cientificamente, para as Estrelas, para a Lua ou para o nosso amigo Sol, classificando-os hirtamente de astros, sem lhes atribuirmos aqueles enredos poéticos da mitologia, que punha o sol-rei a passear de carro, conduzido por um tal Apolo e tirado por quatro cavalos; ou qualquer outra imagem, como a de se figurar a deusa Lua chorando lágrimas de luar, etc., etc.?
Bem sei. Haverá a poesia de um Deus, criador desse universo maravilhoso, é certo; mas eu estou a referir-me à poética imaginação dos antigos, que dos próprios astros fazia deuses humanizados.
Quando, menino e moço, comecei a estudar História Universal, foi com o coração encantado que vim a saber que os povos primitivos, considerando o Sol o mais poderoso dos deuses, o alçavam à categoria de um Deus.
Como era poética a religião dos antigos para com o Sol!
Com que admirativa simpatia eu não aprendi, por exemplo, que a principal divindade dos Egípcios “era um deus-sol, criador, benéfico e omnisciente”, o qual existia “desde o princípio”! Esse deus formava com a mulher (a Lua, já se vê) e o filho uma trindade que todos os Egípcios adoravam com nomes diversos.“A tradição referia que Osiris, o Sol, foi morto por Set, deus da noite; Isis, sua mulher, chorou-o e sepultou-o; Hórus, seu filho, que representava o Sol nascente, vingou-o, matando o assassino.”
Esta mui poética explicação do morrer do dia, da triste noite enluarada e da manhã radiante, vencedora das trevas, foi, confesso-o um poderoso motivo da minha simpatia pela imaginação dos povos da antiguidade.
Está claro que eu nunca me acreditei na lenda encantadora de Osiris, como nunca jamais considerei o Sol com poderes de majestade divina. Mas, como quer que fosse, eu achava encantadora a lenda egípcia do dia, da noite, e do dealbar do outro dia.
Foi grande o meu desconsolo quando, prosseguindo os estudos, aprendi um dia que a Ciência conjeturava haver a Terra sido também um Sol que arrefeceu, ou ter-se dado o caso de o nosso Planeta haver resultado de alguma desagregação solar.
A consolação única era esta, que a mim próprio sugeria - mesmo assim, se a Terra mais não é que uma velha estrela apagada, resta-nos a ideia de um Criador de todas as estrelas criadas. E, assim, no Deus das estrelas, era reencontrada a poesia!
Nós hoje não acreditamos que o Sol, à noite, é morto; que a Lua vem chorar a perda do esposo e que o filho, rompente o dia, vinga seu Pai, e continua seu mister de iluminador do mundo.
Não, hoje não acreditamos nisso.
A luz da ciência, no decorrer dos tempos, venceu a luz do Sol, quero dizer, as observações astronómicas revelaram ao homem que o Sol não era o deus que os antigos imaginavam. Desfizeram-se as lendas! Mas, olhai, a palavra dos homens traz sempre o selo das passadas ideias …
A História repete-se, e com a História se repete a insensível cópia espiritual da formação de outras lendas ou de meras suposições parecidas.
Apesar desse destronamento solar, o perfume poético do passado ainda perpassa em muitas formas da expressão dos nossos dias.
E, assim, a querida e bela e expressiva Língua portuguesa, parecendo que não, está impregnada de poesia na nomeação das alternâncias de luz e de trevas, e do regresso da luz também por um simbolismo parecido com o da ingénua explicação dos homens de outrora,
Na verdade, nós hoje ainda admitimos que o Sol nasce, e destarte, por figuração catacrética, irmanamo-nos aos antigos povos na imaginativa ideia de um surgir por nascimento.
Foram os Latinos que nos transmitiram esse processo simbólico de falar, como se vê pelo termo oriente.
Oriente veio-nos do particípio presente latino oriens, orientis, do verbo orior, cujo significado é - nascer. (A nossa palavra oriundo, isto é, originário, proveniente, veio também deste mesmo verbo orior).
Quando empregamos oriente e nascente, como sinónimos de leste, continuamos no recurso à imaginosa expressão secular, que põe o Sol a nascer.
O modo português de dizer Sol nascente difere, por exemplo, das equivalências de outras línguas europeias, como o francês, que diz, - le soleil levant, o inglês, que diz, - the rising sun. (Note-se que também dizemos como sinónimo de oriente o levante).
Mas, quando o Sol, depois de cumprido o seu trabalho de luz e calor sobre a Terra, se vai, em ilusória caminhada, para debaixo da linha do horizonte, nós dizemos que ele se põe, como se fora descansar.
Le soleil couchant, the setting sun - afirmam Franceses e Ingleses, com igual poesia.
A poética ideia antiga de que o Sol ia morrer está presente na palavra ocidente. Nesta palavra nos legaram os Latinos a ideia de queda e de morte, porquanto occidens, occidentis veio de occido, cair, tombar morto. (O ocaso derivou deste mesmo verbo, e o significado etimológico é - queda, morte).
Como se vê, o poder de imaginação dos antigos era tal que ainda hoje perdura, apesar de a Ciência ter desvendado muitos mistérios e matado muitas ilusões. Aliás, a própria imaginação, a própria poesia podem levar à estrada da Verdade ...
Os povos orientais, adorando as estrelas, fomentavam os estudos astronómicos. Dessa adoração nasceram muitos conhecimentos, porque para conhecer é preciso olhar.
Mas, ainda que assim não fosse, todos nós, os que somos mendigos da Beleza, só gratidão devíamos ter para com a imaginação mitológica pelas benesses recebidas no expressar literário e até no expressar correntio.
A voz dos poetas de Portugal mostra bem que tanto melhor se poetizam as expressões, quanto mais se recorre às ingénuas crenças dos antigos que povoavam os céus de lendas, de imaginárias ações de seres imaginários.
Exemplos? São às mãos cheias.
Abro o livro de Sonetos de Luís de Camões, e, após breve busca, logo encontro a poesia de um céu amanhecente, expresso pela formosa perfiguração assim ideada:
“Já a roxa e branca Aurora destoucava
Os seus cabelos de oiro delicados,
E as flores os campos esmaltados
Com cristalino orvalho borrifava;
Quando o formoso gado se espalhava
De Sílvio e de Laurente por os prados …"
O Sol já não é Deus, mas um deus. Ele impera, claro ou oculto, em toda a vida humana, em altos cogitares ou simples casos ou atos quotidianos.
Que é o Dia, que é a Noite, que é o Tempo, senão brincadeiras do Sol?O Sol joga o esconde-esconde com os homens. Aparece, e eles dizem que é dia. Esconde-se, e eles dizem que é noite. E tudo regulam por ele. E tudo dizem por ele, e com ele.
Eles estão contentes, e mostram que brilha o Sol da alegria. Eles estão tristes; logo se queixam, porque vivem a noite da tristeza.
A manhã, o meio-dia, a tarde, a tardinha, a noite, a madrugada, o alvorecer - quantas e quantas vezes não servem estas palavras de pontos de referência no jogo da nossa vida?!
E quanto mais natural é a vida mais o Sol entra no falar das gentes.
Ide ao campo e ouvi como fala o Povo … ouvi até as suas próprias juras:
- Juro pela luz dos meus olhos; juro por estes dois que a terra há de comer; juro pela luz que me alumia …
A nossa Língua está cheiinha de termos e dizeres, velhinhos de séculos, todos inspirados no olhar para o céu em momentos ora de luz rompente, ora de luz plena, ora de luz, que se vai para fenecer.
Se é a Terra que gira à volta do Sol e não este à volta daquela, nem por isso cai em impropriedade quem disser, por exemplo, que o Sol descreveu no céu a sua curva luminosa, ou quem versejar, como a Marquesa de Alorna versejou:
“Vai a fresca manhã alvorecendo,
Vão os bosques e as aves acordando,
Vai-se o Sol mansamente levantando
E o mundo à vista dele renascendo.”
Bela ingenuidade a do Povo e bendita a imaginação humana, quando elas põem o matiz da Poesia no Céu, na Terra, na Lua, nas Estrelas!
Carlos Fiúza
3 comentários:
Isto está bom,mesmo muito bom.Mas já me custa estar sempre a louvá-lo.Sabe tanto(sobre certas matérias)que (ia a dizer nós)eu me sinto mesmo humilhado. E já há muito tempo que não sentia uma humilhação tamanha.
Reconheço,no entanto,que a culpa não é da sua sabedoria mas da minha ignorância.
Vou,no entanto,ganhar coragem.
Como tem ousadia para dizer que a ciência(a minha adorada ciência),fonte do saber mais seguro,não é poética?
Não há poesia no universo,visto através dum potente telescópio?Não há imaginação?
Pelo menos para chegar às leis científicas não é necessária muita imaginação,tanta,que até põe em causa tudo o que está consabido?
Não será preferível uma linguagem baseada na ciência do que uma linguagem baseada em crendices?
JLM
Poesia e Ciência
Deixem a minha mente poetar, sonhar, vaguear… se preciso for para além da ciência!
Que é a poesia? Que é verso?
Para mim, poesia é a intuição da beleza… sendo o verso a sua expressão rítmica!
Ora, assim como a verdadeira música tem de agradar ao ouvido, assim também os verdadeiros versos terão de ter, fundamentalmente, expressão rítmica…
Terá o telescópico ritmo, som, harmonia?
É possível… o Espaço é imenso e infindo, como infinda é a minha imaginação!
Claro que também a ciência terá o seu ritmo, a sua melodia… o seu intraduzível “mistério” e beleza.
Só que a poesia transmite-me uma beleza diferente… consegue dar-me expressão musical, como a música e a dança!
A arte poética traduz os sonhos do meu ideal, as minhas frustrações, as minhas alegrias… cativa-me pela palavra e arrasta-me para o Belo!
A ciência terá muito de belo, também… mas numa linguagem diferente, quiçá não menos bela.
Mas não tem “alma interior” expressiva por meio da qual me imprima poder rítmico… não impressiona os meus ouvidos, ainda que se reflicta também, agradavelmente no meu coração, onde está em potência o sentir da Estética, o riso,as lágrimas... o sonho!
Quero poder sonhar... poder sofrer... poder ser "livre"...
“Sonho que sou um cavaleiro andante,
Por desertos, por sóis, por noite escura…”
C.F.
Errata:
Queria dizer telescópio, não "telecópico".
As minhas desculpas.
C.F.
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