quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Daqui e dali... Maria

AS VINDIMAS

O outono espreitava.
As videiras engalanavam-se com os seus trajes festivos, de múltiplas e garridas cores, para participarem na azáfama da vindima.
Na quinta, os homens já andavam com as pipas e os toneis aos tombos, a embelezá-los, para servirem de receptáculo ao precioso néctar derramado pelas lacrimosas uvas que, mirradas de saudade, se despediriam definitivamente das cepas e da vida.
De véspera, vinham de longe ranchos de homens, mulheres e crianças (“as rogas” ), com os seus parcos haveres à cabeça e taleigas às costas.
Esperava-os um quotidiano de trabalho muito duro e árduo, que eles mitigariam com o entoar de joviais canções, acompanhadas pelo tanger de alguns instrumentos musicais: “gaita-de-beiços”, “bombo”, “pandeireta”, “concertina”, “ferrinhos”, raramente “a viola ou a guitarra”, e a ingestão da adulterada bebida de Baco. Imprimiam, assim, à faina agrícola um cariz folgazão, jovial, de pseudo contentamento. Trabalhando de sol a sol, os homens da roga tinham a ingrata tarefa de acarretarem, pelas íngremes arribas do Douro, grandes cestos vindimos cheios de uvas até ao cocuruto, para o local onde se procederia à sua imolação – o lagar.
Quando este começava a querer trasbordar fazia-se a poisa.
Vestindo ceroilas curtas, com o mosto até meio da coxa, os homens permaneciam dentro dele horas a fio, para espezinharem os últimos bagos que haviam ousado resistir ao massacre do ralador.
Tocavam e cantavam alegres melodias ao som das quais as raparigas, mulheres e crianças rodopiavam no terreiro, sob o olhar cúmplice da lua, acariciadas com a brisa morna da escuridão.
E já a noite dormia a sono solto, quando terminavam a última tarefa do seu longo e penoso dia de trabalho - a poisa.
Acabada esta, recolhiam às “cardanhas” (casas de pedra grosseira, chão térreo e telhados de zinco), para estirarem o corpo nos colchões de palha, tapando-o com esborceladas mantas de trapos. Antes de adormecerem, os namorados esquivavam-se, por uns instantes, aos olhares reprovadores dos mais velhos, para se mimosearem com afagos e carícias.
Mal alvorecesse, ter-se-iam de “pôr a pino” (como eles usavam dizer), para mais um dia de cruciante labor.
Quando cortavam os últimos racimos, apareciam com os cestos enfeitados, acompanhados das vindimadeiras que entregavam “o ramo” (feito com flores silvestres), aos patrões.
O afã findava com um grande bailarico. E todos, desde as crianças aos anciãos, passando pelos patrões, dançavam e cantavam.
Culminava assim, em tom festivo, a faina das vindimas.
Esta servira apenas para se poderem alimentar melhor, e à sua progénie, durante mais alguns meses.
Com a vinda do rigoroso tempo de inverno, muitos ficariam à mercê da caridade alheia para sobreviver.
Quão dura e penosa foi a vida daqueles durienses de outrora!
Seria da maior Justiça que não se olvidassem, e lhes fosse feita uma Homenagem.

Maria
Fotos tiradas por Dr. Luís Pires de Castro e cedidas por Dr. Sebastião Ribeiro

5 comentários:

Alexandrina Areias disse...

Concerteza que estas fotos têm já alguns aninhos... mas não deixam de ter a sua beleza... e a foto da parelha de bois a 'lavrar' a terra é magnífica...
Adorei este belo texto sobre "as vindimas"... A forma como está escrito, transporta-nos para o imaginário desses árduos tempos... É pois, uma bonita homenagem a esses trabalhadores rurais durienses...

AA

Unknown disse...

Belo texto,que conjuga muito bem o bucolismo de Júlio Dinis(As Pupilas do sr. Reitor),o realismo de Eça(A Cidade e as Serras) e até o neo-realismo de Alves Redol(romances sobre o vinho do porto).
A preocupação constante com a adjectivação dá-lhe um rigor de descrição e uma profundidade de sentimentos que torna vivas e actuais as figuras e as situações que descreve.
JLM

Anónimo disse...

Texto e fotos fantásticos. Parabéns!
Miguel

Anónimo disse...

Lindissimo este texto que nos leva ao antigamente.
Áquele antigamente em que as pessoas apesar daquela vida tão dura não perdiam a alegria e a boa disposição.
Tenho saudades desses tempos em que as pessoas eram mais humildes,mais amigas umas das outras e sobretudo mais fiéis, ao contrário do presente em que apenas impera a inveja e a falsidade.

Anónimo disse...

"Enorme" texto e fotografias bem a propósito, que realmente nos fazem recuar a um tempo que nos traz, por um lado, nostalgia, por outro alguma frustração por sabermos que a vida de então era bem ingrata e cruel para os verdadeiros protagonistas!
O sol a sol, o enorme cesto carregado sobre ombros, a côdea...
Não posso deixar de dar os parabens ao autor do texto!
Muito bom.
M. Lameiras