Deuses – Passado ou Presente?
A gente hoje lê aquelas fábulas dos deuses da antiguidade e sorri das imaginosas criaturas do Olimpo, e ainda mais da infantilidade de tanta historieta.
Mas eu estive a meditar que, afinal, os deuses de outrora continuam presentes em muitos aspectos da nossa fala de hoje.
Começo por indagar:
Quem haverá aí que ainda hoje acredite nos deuses do paganismo grego e romano?
Ninguém! – é a expressão exclamante.
Mas não é verdade.
Muita gente acredita, sem dar por isso, na mitologia, naquelas histórias fabulosas de deuses a granel que a imaginação de Gregos e Romanos criou, e até se dá continuidade a crendices e cerimónias da antiguidade pagã.
Principiemos por ver que, na vida sentimental e espiritual, os antigos nos legaram muita coisa.
Quantas e quantas vezes não nos iludimos com fantasias ou utopias, a que chamamos quimeras? Que é uma quimera, senão uma ideia monstruosamente fantástica, um sonho absurdo pelas proporções do exagero? Como e onde nasceu a quimera?
Nasceu na Lícia, na imaginação dos Antigos, que a um monte vulcânico atribuíam a morada de um monstro com a cabeça de leão, corpo de cabra, cauda de dragão. Fogo, labaredas lhe vomitavam a boca.
Khimaira lhe chamavam Gregos, chimaera lhe chamavam Latinos, quimera dizemos nós, Portugueses.
E desse monstro da montanha de fogo veio o nome para o monstro das ideias absurdas que todos nós abrigamos, por vezes, no cérebro sonhador.
Há aí muita gente que acredita em agouros.
“Esta mosca traz mau agouro”;
“Lançou-lhe um mau agouro”.
Aí temos a fábula romana em acção ainda em nossos dias, porque o agouro vem de augurium, a adivinhação pela observação do voo das aves, pelo canto delas, pela forma de comer, etc.
“Aquele sujeito tem mau génio”, “O menino precisa de ser refreado no seu geniozinho”, etc., etc.
Tudo isso vem da crença dos antigos numa divindade natural, geradora de todo o ser.
Havia um fartote de génios, desde o génio tutelar ao deus da natureza inteira. Cada pessoa tinha dois génios, um bom e outro mau, aquele inspirador do bem, e este do mal.
As inclinações do espírito eram reguladas pelos génios.
Hoje temos génios do futebol, da política, da música … e até da literatura!
Há génios para tudo, para todos os gostos!
A Terra abunda de seres geniais! ...
Quantas e quantas pessoas não acreditam que, depois de mortas, vão incarnar uma animal qualquer, um burro (salvo seja o burro), uma pulga (morta seja a pulga), etc.
Ora, na crença mitológica dos antigos chamavam-se animales as divindades que provinham de almas, de animae.
Quando hoje se diz de um indivíduo tonto ou mau ou estúpido – “mas que grande animal”, na essência está-se a acreditar que houve transmigração de almas.
Quando chamamos de “burros” uns aos outros, quando nos apelidamos de “mosquinhas mortas”, de “ursos”, “macacões”, etc., etc. afinal aí está a figurada andança das almas de uns animais para os outros.
Com o correr dos tempos, algumas figuras mitológicas obliteraram a sua primitiva feição.
Por exemplo, todos nós hoje chamamos demónio ao diabo ou aos espíritos malignos que andam pelo mundo para perdição das almas.
Mas daemonion, grego daimónion, era um ente divino, mais benéfico do que maléfico.
Hoje quando dizemos “o demónio de homem”, “demónios te levem”, etc. o demónio já está ao serviço do diabo.
Foi pena que o demónio se fizesse mau, porque daimónion ou daemonion era sábio e bom rapaz, na mitologia greco-latina.
Numerosas palavras que a civilização utiliza vieram de práticas religiosas do paganismo.
“Aquela batalha foi uma hecatombe!”
Empregando hoje esta palavra hecatombe, estamos a trazer à vida o sacrifício de cem vítimas, em especial de cem bois, como se fazia na antiguidade, em honra de deuses (de hecaton, cem + bous, boi).
Costumes e crenças, cerimónias, mitos – tudo isso revive a cada passo!
Quando hoje há desbragadas pândegas chama-se-lhes, por exemplo, orgias.
Ora, às festas de Baco se chamava órgia em grego, orgia em latim, de uma palavra grega, orgé, isto é, furor.
Hoje uma situação por muita gente desejada e até provocada é a situação de fama.
O político quer ter fama, o jogador de futebol deseja tornar-se afamado, o escritor faz os impossíveis para ser famoso … e até as novelas de cordel das TVs dão os seus “15 minutos de fama” a qualquer um! ...
A fama é o renome, é a reputação, é a glória!
Também essa palavra nos veio da antiguidade mitológica.
A Fama era mulher divina, mensageira de Júpiter.
Ruidosa, pois o seu nome vinha do grego phéme, que significa ruído, a sujeita era monstruosa, e tinha olhos, orelhas, boca e línguas em tão grande quantidade quanto de penas lhe cobriam o corpo.
Nunca estava calada a Fama. Falava pelos cotovelos e como tinha asas, subia aos montes e aí era dar à língua, espalhando novidades, que até parecia irmã de muito(a)s alcoviteiro(a)s que nós bem conhecemos.
Tal era a Fama! …
A imaginação dos antigos era assaz poética.
E essa poesia mitológica palpita em palavras poéticas de todas as línguas.
Por exemplo, na nossa bela palavra Aurora.
A bela Aurora, filha de Titã e da Terra, e que presidia ao dealbar, morava em palácio dourado. Esta senhora D. Aurora, que os raios do sol nascente doiravam, era uma roubadora de maridos incorrigível.
Apesar do seu mau porte, todos nós gostamos do nome dela, e até temos a aurora, o nome da aurora, a fazer poesia ao dia que desponta.
O dizermos hoje que se sente volúpia ou prazer, está a acreditar-se, sem querer, na antiga deusa dos prazeres, a chamada precisamente Volupia, que se desdobrava nas outras infames sujeitas que presidiam às dissoluções. Volupia tirava o nome de Volup, isto é, agradável.
Se hoje os homens de ciência falam nas forças telúricas, nos abalos telúricos, também já os antigos personificavam a Terra, à qual chamavam Tellus, a deusa mulher do Céu.
A ocasião ou occasio, à latina, era a deusa que presidia ao tempo ou momento mais favorável para se ser bem sucedido em qualquer acção ou empreendimento.
Quando hoje se diz que a “ocasião faz o ladrão”, podemos descobrir no dito a deusa romana do momento propício, do momento favorável.
Quem há aí que jamais tenha dito a palavra discórdia?
“Deu-se uma grande discórdia entre aqueles dois amigos”.
Pois a discórdia, o pomo da discórdia é outro exemplo da sobrevivência mitológica nas expressões modernas e hodiernas.
Quem era tal sujeita chamada Discórdia, no Olimpo?
Era, poderei dizê-lo figuradamente, a deusa que dividia os corações amigos, tornando-os zaragateiros.
A Discórdia era a deusa da zaragata, dos conflitos, das batalhas, das mortandades e, por consequência, a deusa causadora da fome e da miséria que as dissensões provocam.
Neste nome latino de Discordia entra o prefixo dis, que exprime separação, divisão e negação e entra também o termo cors (cordis), isto é, o coração. De maneira que Discordia significava o desacordo, a divisão dos corações.
A figura da senhora Discórdia é das coisas piorzinhas que pode haver. A cabeça cheia de serpentes enroladas, os olhos espantadiços, a boca a esbravejar de espuma odienta, e as mãos sangrentas, uma com um punhal e uma cobra, e a outra mão com uma tocha acesa.
Era a Discórdia filha de Júpiter.
E sabem porque moveu tanta desavença? Por um motivo bem fútil: não foi convidada para um casamento e ofendeu-se toda.
Peléu e Tétis tiveram as suas bodas.
A Discórdia, fula por não ser convidada, resolveu meter uma tremenda intrigalhada entre as outras deusas: colocou na mesa um pomo de ouro, e nele inscreveu isto: “À mais formosa”.
Como é subtil a esperteza feminina!
Logo Vénus e Juno e Palas, três mulheres desejosas de serem consideradas a “mais formosa” do pomo de ouro, armaram uma zaragata formidável.
Um tal de Páris, armado em juiz daquele desordeiro “concurso de beleza feminino”, deu o primeiro prémio a Vénus. Resultado: as deusas engalfinharam-se, os deuses também e houve lá para o Olimpo desgraças pela medida grande.
E assim o pomo da discórdia, por ser dedicado “à mais formosa” meteu em zaragata estas três lindas mulheres: Juno, Palas e Vénus, intrigadas pela Discórdia!
Ao saber do acontecido, Júpiter, Chefe dos Deuses, pôs a Discórdia no meio da rua …
E ela (a Discórdia) aí anda, de terra em terra, de nação em nação … de irmão em irmão!
Carlos Fiúza