segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Daqui e dali... Henrique Raposo

A cultura da politiquice

Nas últimas semanas, a cultura da politiquice atingiu o seu pique aqui na Pátria. Para a elite política e "comentadeira", uma chantagem é apenas uma jogada. Os "José Sócrates" nascem e alimentam-se neste ambiente podre.
I. Já aqui escrevi várias vezes sobre o assunto, mas volto à carga: não temos cultura política, temos cultura de politiquice. Em "Lesboa", a política é reduzida a um mero jogo táctico, onde os factos, os números e os princípios não contam. Nesta "Lesboa" da politiquice, a política passa a ser apenas um concurso: "quem monta a esparrela mais suja ao adversário?". E, para cúmulo, a elite "comentadeira" (políticos-comentadores e comentadores-políticos) acha que estes esquemas são o ADN da política.

II. Nós últimos dois meses, ficámos a saber o seguinte: o governo não conseguiu controlar a despesa, mostrando incompetência e cobardia. Há um descalabro total nas contas. Um facto. Depois, perante as exigências da oposição, José Sócrates ameaçou demitir-se, caso o seu orçamento não fosse aprovado. Pior: dizia que não negociava, pois isso representaria governar com o orçamento da oposição. Outro facto. Um facto que mostrava, ao vivo e a cores, o autoritarismo (versão "quero, posso e mando") e a irresponsabilidade (versão "vou saltar do barco") de José Sócrates. Estes eram os factos que estavam em cima da mesa. Porém, a cultura da politiquice colocou toda a pressão em Passos Coelho (o PSD, de repente, passou a ser um partido que governa o país desde 1995). Mas, bem vistas as coisas, esta inversão do ónus acaba por não ser surpreendente: basta recordar a forma como Manuela Ferreira Leite foi desprezada.

III. Mesmo aqueles que perceberam a armadilha montada por Sócrates transformaram essa óbvia "chantagem" numa mera "jogada". A chantagem do primeiro-ministro era (e é) intolerável do ponto de vista política e moral. Mas nesta cultura da politiquice não existe moral, só existe um "relativismo" táctico que reduz tudo a esquemas e esparrelas. Não interessava qualificar a armadilha e a chantagem de Sócrates, só interessava saber se Passos ia cair na armadilha. Felizmente, Passos não fez esse favor a Sócrates.

IV. Um modo de vida está a acabar, um regime está em crise, mas a "Lesboa" do comentário não consegue passar da espuma dos dias, não consegue ver além do seu umbigo intriguista. Este ambiente politiqueiro, que une partidos e muitos media, é o tipo de ambiente que afasta o debate público dos problemas reais do país. É o tipo de ambiente que permite que um ilusionista, como José Sócrates, consiga passar vários anos sem responder, de forma directa, às perguntas que lhe são dirigidas. Só me lembro de uma verdadeira entrevista com José Sócrates. Não por acaso, os entrevistadores dessa foram apelidados de "mal educados" por muita gente. Na cultura da politiquice, encostar o primeiro-ministro às cordas é sinal de "má educação".
Henrique Raposo, Expresso

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