quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Daqui e dali... Carlos Fiúza

Sonhar Português

Era uma vez um povo que sempre sonhou que um dia ainda viria a ser rico.
Esse povo olhava “para fora” e sonhava: Tenho o mesmo direito, ou não?
E um dia os seus “pares” (vindos dessa Europa que ele pensava ser rica) bateram-lhe à porta… e ele escancarou-a.
Não mais couves com batatas”, sonhou; “não mais um punhado de azeitonas e uma côdea de pão bolorento…
Como que por milagre…
… os antigos “caminhos de cabras” deram lugar a quilómetros de belíssimas estradas (com três faixas para cada lado e separador central) … a enxada e o velho jumento foram substituídos por um “todo-o-terreno” topo de gama… as traineiras (essas latas inúteis) foram “abatidas” e encostadas aos cais, lá apodrecendo aos poucos.
Para quê plantar, semear, pescar… o supermercado da esquina tinha todos esses produtos e a preços bem convidativos.
O Escudo dera lugar ao Euro… o futuro estava, assim, assegurado!
E esse povo (que já se pensava feliz) continuou a sonhar…
Em quê já não sabia… mas sonhava!
E para sonhar melhor, comprou uma casa de férias na praia… trocou de carro, de hábitos… de ALMA!
E continuou a sonhar, a sonhar muito (não em como pagar as casas, os créditos que se acumulavam) … mas a sonhar/pensar o quão “trabalhoso” é não fazer nada!
Pois se os bancos lhe ofereciam “dinheiro barato” (quase de borla!) … se o incentivavam, até, a ter a sua própria piscina, era porque o seu “sonho” era exequível… era, mesmo, um “direito adquirido”.
Mal sabia esse povo que o ato de sonhar anda quase sempre de mãos dadas com a não ação.
E porque o não sabia, continuou a sonhar, a pensar até que se o moleiro era pago por fazer o pão, ele devia ser pago por sonhar.
Não era ele um sonhador?!
Não havia nada de desperdício no seu sonhar…
Não é verdade que nem todo o ato de sonhar corresponde a uma ação?
Se aceitamos (e pagamos) a um escritor, a um metalúrgico, a um político que primeiro sonham e só depois executam (quando executam), porque não aceitar (e pagar) a quem apenas sonha?
Não comanda o sonho a vida (como sempre lhe disseram)?
E assim esse povo “descobriu” que o ato de sonhar é, muitas vezes, semelhante ao ato de nada fazer ou mesmo ao não existir.
Como o ato de dormir… porque mesmo a dormir os sonhos são imagens criadas no cérebro.
E assim…
… o dormir e o sonhar se completavam!
Os “biliões” (ou os milhares de milhões, como um dia ouviu na televisão) passaram a povoar os seus sonhos…
Até que um dia, com os credores quase a baterem-lhe à porta e os mercados financeiros a fecharem-se-lhe, leu (casualmente) num dicionário:
BILIÃO = Mil milhões = Um milhão de milhões”.
Achou isto estranho, um autêntico “absurdo aritmético” e não conseguiu compreender:
Como é que um “bilião” é um “milhão de milhões”?
Outro dicionário lho esclareceu:
Bilião, ou antes bilhão – mil milhões (1.000.000.000) segundo o sistema português, francês, italiano e americano OU um milhão de milhões (1.000.000.000.000) segundo o sistema inglês e alemão”.
Os “zeros” cegaram-no e pensou: “Porquê ter um bilião com 9 (nove) zeros quando posso optar pelo sistema inglês ou alemão e ter o mesmo bilião com 12 (doze) zeros?”
E assim, por mera “engenharia aritmética”, mudou de sistema… e passou a sonhar que tinha muito mais “dinheiro” (como os ingleses e os alemães) … para alguma coisa lá estavam os zeros.
De novo “rico”, esse povo continuou a sonhar… e a gastar!
Não foram as maiores ações da Humanidade fruto do sonhar/pensar?
O IRS, o IVA e a Inflação não nasceram do sonho/pensamento? Como o Holocausto?
Capitalismo e mercados financeiros não são entraves ao “sonho”?
Não são os “indignados” de hoje (ou os indigentes do amanhã) uma pústula no “sonhar” dominante?
Mas…
… sobre isso o melhor é nem sonhar/pensar!
O presente diz-nos que todos os malefícios que assolam a humanidade tiveram a sua génese no sonho/pensamento… em muitas noites de insónia!
Foi assim em Hiroshima… como o foi no Darfur… como já o tinha sido antes com o “arianismo”!
Finalmente esse povo acordou e (já dolorosamente desperto) pela última vez SONHOU que o mais “racional” era… DEIXAR DE SONHAR!

E assim aconteceu!

Carlos Fiúza

3 comentários:

Anónimo disse...

Texto esclarecido, racional e muito objectivo!
Pedro M

mario carvalho disse...

felizmente ainda ha quem sonhe

pois já é pouco real..

com

mais couves com batatas”, mais um punhado de azeitonas e uma côdea de pão bolorento…”
Como que por milagre… do diabo.. até isso desapareceu

sempre um grande prazer -- apreciar
os seus textos.. pois não são sonhos são uma realidade "real"

cump

mario carvalho

ps, as preocupações são menores,, já não imaginamos o fim do mundo..

só o fim do mês.

Penso que esta crise tornou as pessoas mais reais , mais humanas e mais solidárias e.. até mais bem educadas.. perderam a caracterista
do estupido novo rico---

" A ridicula estupidez barriguda"

Anónimo disse...

Já não surpreende a excelente qualidade dos textos de Carlos Fiúza. O que me surpreende um pouco neste, pela positiva, é o retrato fiel, límpido e abrangente da sociedade atual. E tudo aquilo que C. F. aqui tão bem retrata, remete-me imediatamente para esta máxima de Bertold Brecht, que aqui deixo em jeito de conclusão/aviso:

"AS REVOLUÇÕES PRODUZEM-SE NUM BECO SEM SAÍDA"...

h. r.