segunda-feira, 14 de junho de 2010

Daqui e dali... Carlos Fiúza

Filosofia e seus termos

Eu creio não haver ninguém que, de vez em quando, não seja filósofo.
Poderá até afirmar-se que todo o homem pratica a filosofia, não digo já a Filosofia como ciência dos primeiros princípios e das causas primeiras, mas a filosofia como simples desejo de saber.
Aliás, é de Aristóteles a afirmação de que "todo o homem deseja naturalmente saber".

Calcule-se que os homens são tão filósofos, tão curiosos, tão bisbilhoteiros, que até se metem com os burros, para resolverem grandes problemas, como, por exemplo, o do livre arbítrio, ou seja o atributo, poder de vontade para escolher.
Troçando da doutrina de Buridan, filósofo escolástico do século XIV, os seus adversários serviram-se do exemplo de um hipotético burro que, posto entre dois feixes iguais de feno, se deixa morrer "burramente" de fome, por lhe faltar o poder de agir ou não agir por escolha.Este exemplo não se encontra na doutrina de Buridan, mas o chamado "burro de Buridan" é, de facto, uma expressão tipicamente filosófica, no que a Filosofia tem de curioso.

Vejamos:
Arbítrio prende-se com o tema latino arbiter, testemunha, árbitro.
O burro não soube ser árbitro ou senhor do destino do feno ... Verdade, verdade, e sem ofensa, também há homens assim, para honra dos asnos ...

Aqui se segue (pelo menos no que respeita ao intento) um estudo a respeito de palavras de Filosofia e, está claro, irei “filosofando” a propósito das mais interessantes.

A primeira observação que faço é esta - - na Filosofia há termos vulgares que se elevam a acepções especiais e há termos arrevesados que os filósofos engendram pela necessidade de exprimirem as suas ideias.

Por exemplo, a palavra carácter.
Na linguagem de todos os dias, é fácil ouvir: "Fulano tem carácter". Mas, se entrarmos na Filosofia, o termo carácter já é upa, upa!
O carácter é atributo de um ser, o seu sinal distintivo.No fim de contas, está tudo bem, porque a palavra carácter, no grego karakter, era sinal gravado, de karatein, gravar.O carácter grava, distinguindo maneiras de ser, de sentir, de pensar, de agir.
Outro exemplo, este mais pinturesco.
Hoje, toda a gente sabe o que é um pneumático (ou um pneu). "O automóvel rebentou um pneumático".
Mas agora, verdade, verdade, todos conhecem qual é a ciência que se chama pneumática?
Eu digo: a pneumática, em Filosofia, é a ciência das coisas espirituais.
Parece esquisita esta paronímia do pneumático ou pneu de um carro e pneumática, ciência das coisas dos espíritos? Tudo se explica.
Em grego (e os filósofos adoram o grego para engendramento do seu palavreado) pneumatikós é relativo ao sopro, pneuma. Os pneus de um carro enchem-se de ar a sopro de bomba.
Mas o espírito não é sopro também? Portanto, a pneumática ... ciência das coisas espirituais.

Agora diz-se muito: "acidentes" de viação; ele teve um "acidente" e até se fala nos "acidentes" de um terreno, por asperezas, altos e baixos, sinuosidades.
Que é acidente? Filosoficamente, nós temos o acidente predicamental, (o que existe em outro) e o acidente predicável (o que se acrescenta à essência); enfim, o acidente é o que não pode existir em si mesmo. Accidens (accidentis), é o que cai para fora, é o que chega caindo, o que aconteceu.
"Cair com um acidente na rua", diz-se por aí, algo pleonasticamente. O acidente é que cai, na verdade.

E a alma? A alma é palavra da Filosofia e também da linguagem comum.
"Amor da minha alma!". "Ó seu alma do diabo!". "É uma alma negra!". "Uma esmolinha para as almas!".
E o que é, filosoficamente, a alma?
Esse portentoso Padre António Vieira diria que a alma é, no homem, "tudo o que há de beleza, de ciência, de arte, de valor, de majestade, de virtude".
Filosoficamente e secamente, alma é princípio imaterial da vida, é substância espiritual perceptível somente pela consciência humana. Já para os gregos psykhé significava ao mesmo tempo alma e vida.
A origem de alma, etimologicamente, é anima, isto é, sopro, vida.

Entre a linguagem geral e a filosófica estabelecem-se, por vezes, diferenças mui subtis.

Por exemplo, conceptus em latim é tomado, apanhado, concedido.
Substantivado, deu-nos conceito, em Filosofia a ideia geral, abstracta.
Na linguagem vulgar entrou o conceito: "Que conceito fazes de mim?". Porém, o derivado concepção toma-se, em Filosofia, por acção de formar conceito.

É muito interessante relacionar a linguagem geral e a popular com a terminologia filosófica.

Na expressão psico-sensorial, temos as alucinações.
Como é que o Povo traduz isto? Traduz por fantasmas ou visões. A alucinação é uma perturbação mórbida e vigil da sensibilidade, que nos faz ver, ouvir, ou apalpar objectos exteriores ausentes.
Alucinação encerra o latim allucinare, isto é, não poder chegar à luz, ou estar enganado com ela.
Allucinatio é erro pela luz do espírito, divagação, sonho, delírio.
Inacessível ao vulgo uma palavra como alucinação, ele adopta em geral coisa mais fácil de entender: "vê fantasmas, tem visões"!

Aliás, a Filosofia é o supra-sumo da expressão.

Um menos culto dirá: suponhamos isto, suponhamos aquilo. Um pensador dirá: Ponhamos esta hipótese.
No fundo, ambos dizem o mesmo, pois o termo hipótese é suposição (em grego hypóthesis).

A linguagem corrente, medial entre a popular e a culta ou técnica ou erudita, igualmente estabelece acepções desviadas do sentido filosófico.

Exemplos:
Às vezes escreve-se: "Não há direito; aquele negócio é uma especulação, uma exploração".
Se subirmos à Filosofia, a especulação também explora, mas observando, pois especular, como já no latim speculare, de specula (ponto alto de observação ao longe), é observar. O fim da especulação, filosoficamente, é observar, para conhecer ou explicar.

Um palavrão filosófico e científico hoje muito corriqueiro é o dinamismo.
"O avançado-centro não tem dinamismo". "A falta de dinamismo do Ministério A, X ou Z"
É o grego dynamis, força, que entra no palavrão, tornado deveras corriqueiro talvez por culpa de Leibniz e do sistema que dá à matéria, essencialmente constituída de forças.

E o devaneio? Quem não tem devaneios?
Filosoficamente, o devaneio é o sonho acordado. (Curiosa é a formação: de + vão). O devaneio é o pensamento em coisas vãs.

Critério em Filosofia, é o sinal com que discernimos ou julgamos algo que não confundimos com outra coisa.
O latinismo criterium, já era do latim escolástico. A raiz é o grego krinein, julgar, por meio de kriterion, aquilo com que se julga.
É tão vulgar na linguagem corrente que até se diz: "Fulano é muito criterioso".

A contingência - eis outra flor muito encontradiça nos jardins filosóficos.
Contingente, o que pode ser, o que existe e poderia não existir.O étimo de contingente é expressivo: con + tangere, tocar.
Contingere significa chegar por acaso, tocar em sorte, tocar uma coisa que chega, contra o que se esperava, mas em bem.

E não me prendo com palavras, como analogia e análise, por serem assaz conhecidas, etimológica, filosófica e até vulgarmente, e prestáveis a várias ciências. A análise (desde a análise metódica à ... análise ao sangue, que todos fazemos) está muito popularizada.

Na Filosofia entra a tão conhecida Estética, palavra que nasceu em 1750, e que teve por pai Baumgarten, filósofo alemão, o qual foi buscar ao grego aisthenesthai, sentir, pelo adjectivo aisthetiké, sensível, o fundo dessa palavra.
A Estética é a ciência de sentir a beleza. Há quem julgue o termo infantil, mas, olhando a que se trata das manifestações sensíveis do belo, o vocábulo é bem constituído.

Vem agora o termo estóico, o filósofo de moral austera - sofre e abstém-te!
O estoicismo, como palavra, veio de um facto simples: as lições dos estóicos eram dadas num pórtico de Atenas, e pórtico, em grego, é stos. Stoikós é referente ao pórtico.

E a dialéctica?
Na lógica das formas, a dialéctica é o acto de raciocinar, porque em grego dialektiké é discussão, ou arte de discutir. Foi o latim filosófico dialectica o espalhador do termo.
Já agora lembre-se o dialelo, ou seja, filosoficamente, o círculo vicioso, do grego diallelos, um pelo outro.

Método em que se fala muito é dedutivo.
Dedução veio de deductio, e esta de deducere, fazer sair de, conduzir de cima para baixo, fazer descer.
Por isso deduzir, em Filosofia, é descer do geral para o particular, é vir do derivante para o derivado.

No pórtico do Templo de Delfos inscreveu-se a letras de ouro – Gnothi seautón, conhece-te a ti mesmo, preceito que se vulgarizou com o latim nosce te ipsum. Não se sabe a quem atribui-lo, se a Pitágoras, se a Sócrates, se a outros filósofos gregos.
Ora a doutrina segundo a qual se deve fazer o conhecimento de si mesmo pela consciência tem este nome espampanante – heautognose, do grego heauton, de si mesmo + gnósis, conhecimento.

São ou não difíceis na linguagem os filósofos?

Vejamos cepticismo, por exemplo, indicativo da posição filosófica dos que duvidam de o espírito ser capaz de atingir a verdade ou a certeza.
A origem da palavra céptico é o grego skeptikós, o observador, de sképtomai, observar, examinar, porque os cépticos gregos gabavam-se de observar sem afirmar.

Outro termo, também derivado em ismo, e deveras batido: o empirismo.
Empirismo, a teoria que impinge a experiência e só a experiência, prende-se no grego empeirikós, de empeirós, experimentado.
Primeiramente termo médico, passou à Filosofia. A Medicina empírica anterior à Ciência, a Filosofia empírica anterior às leis do Espírito, estão pela hora da morte, desde o século XVIII... mas ainda há empíricos com fartura.

Na Filosofia moral, o filósofo Augusto Comte introduziu esta palavrinha - altruísmo, nascida em 1830, do latim alter, outro, mas ... com o francês autrui, outrem.
O altruísmo é, de certo modo, a filantropia, o que mais cristãmente se chama amor do próximo ou caridade.

Sendo a linguagem dinâmica, os movimentos filosóficos, estéticos e literários estão constantemente a criar termos novos, num verdadeiro exercício do crescei e multiplicai-vos.

Aí temos o novo atomismo, porque o atomismo velho supunha o átomo indivisível, e ele já se dividiu.
A etimologia de átomo é o que se não divide. Dividido o átomo, a etimologia levou um quinau.

E o que dizer do movimento literário com base filosófica a que servilmente em Portugal se dá o nome de surrealismo?
Porque é asnidade dizer surrealismo, e nisto ainda ninguém reparou neste País que recebe, de cócoras, tudo quanto vem do estrangeiro.
O surréalisme nasceu em França como o novo movimento que parte do conceito de que o subconsciente é a mais alta realidade, e o espírito subconsciente é que se deve expressar na arte e na literatura.
A realidade do subconsciente é uma realidade-superioridade, e o automatismo psíquico é que deve ser externado.

Pois bem. Em francês sur é sobre. De modo que em França está correcto o surréalisme, de sur, sobre + réalisme.
Mas em Portugal surrealismo é uma grossa asneira!
Super-realismo, supra-realismo ou até sobre-realismo é o que está certo. Surrealismo, nunca!

O mesmo se dirá (noutro sentido), sobre existencialismo, doutrina filosófica que pretende ir às raízes da existência (para esta doutrina a existência precede a essência).

Mas que é a existência? Sabe-se lá! ...Talvez a actualidade da essência …
Mas que é actual, se tudo na vida foge num presente que, daí a nada, já é passado?

É por isso que todas as filosofias transitórias passam com o Tempo …

... Só o que o Tempo não vence é a ânsia humana para filosofar, porque filosofar é interrogar os mistérios humanos e extra-humanos do Universo, e esses são eternos!

Carlos Fiúza

10 comentários:

Anónimo disse...

Caso para questionar: eis aqui o super-homem (como diria Nietzsche) com a (sua) verdadeira demonstração de sapiência, de gnoseologia,etc...., no vastíssimo campo das descrições filosóficas que se conhecem? Ou mais um "one man show" de C.F.? Ainda bem que temos Googles, Webs, Wikipédias e outras Médias para "botar figura", assim, nos blogues de casa... Mas, contudo, vale pelo excelente esforço altruista de tentar informar quem não sabe. Parabéns!

Anónimo disse...

Ufa! É muito bom o texto, mas consegue ser um pouco cansativo. Se fosse em fascículos custava menos a ler. A não ser que a ideia seja mostrar que ainda há quem exija mais do leitor do que o Vitorino A. Ventura!
X-Man

Anónimo disse...

Parabéns! Obrigado por ensinamento tão esclarecedor.

Anónimo disse...

“Je n’ouvre jamais des lettres anonymes” – tal a frase típica de Calino, figura da comédia musicada do teatro francês.

Em todas as idades e em todos os lugares do mundo, onde quer que esteja um homem, aí está o erro em potência …

“Não abro nunca cartas anónimas” - dição expressionalmente escorreita, mas conceptualmente disparatada que não ocorreria, nunca, ao grande Nietzche (e não por ser, ele sim, um super-homem) mas que medraria na mente de um qualquer candidato a “one man show”, qual Calino (com ou sem Goggles, Webs ou Wikipédias).

C.F.

Unknown disse...

Caros:
C.F. passou grande parte da sua vida a estudar,quantas vezes sem a ajuda de ninguém e sem possibilidade de comunicar com o seu semelhante.Está a aproveitar esta oportunidade para fazer chegar aos outros o resultado do esforço de muitas noites perdidas(ou ganhas)nas suas indagações.
Mas eu já o avisei que não pode transmitir de uma só vez a sua sabedoria porque nós não temos capacidade para encaixar tudo o que nos oferece de mão beijada.
Vá aos poucos e nós teremos tempo de fazer a necessária aprendizagem e interiorização.
Mas não desista.Continue.
Havemos de aprender alguma coisa e de gostar.
JLM

Anónimo disse...

“….. onde quer que esteja um homem, aí está o erro em potência”.
E o erro aconteceu … ao aventar-se a hipótese de C.F. pretender “botar figura” nos “blogues de casa”.
Tenho o privilégio de ser seu amigo há mais de 50 anos. Desde o tempo da Faculdade de Direito sempre me levou a palma; fui o seu eterno número dois.
Seguimos caminhos diferentes: eu fui para docente universitário, ele abraçou a banca internacional. Foi um dos melhores no seu mister. Em nome do Governo Português assinou várias convenções internacionais, com aplicação em toda a banca nacional.
Correu o mundo por diversos anos, sempre como especialista em “comércio externo”. Culto, extraordinariamente culto, domina a Filosofia e os Clássicos. Mas a sua verdadeira “paixão” são as palavras, todas as palavras de todas as línguas. Já conhecedor do Latim, obrigou-se a aprender o Grego, por si só, com uma gramática e um dicionário. Fala e escreve em cinco línguas estrangeiras, a maioria das quais como “self made man”.
Este meu depoimento é feito à sua revelia. Conhecendo-o como o conheço, sei que vai ficar zangado comigo … é um risco de corro em nome da nossa amizade.
Sou leitor do vosso blogue por ele, pelos seus escritos.
É injusta, pois, a suspeita de pretender ser um “one show man”. O meu protesto vai nesse sentido.

Diogo

Mariana disse...

Há sempre quem não lide bem com o facto de o "outro" ser melhor. Isto leva a invejas e mesquinhices que apenas merecem a indiferença de todos aqueles que demonstram que são muito superiores. É o caso de Carlos Fiúza.
Grande demonstração de saber e de superioridade a todos quantos incomóda o seu saber superior.
Obrigado pelos seus artigos que nos fazem reflectir e aprender.
Parabéns!
Mariana

Anónimo disse...

João e Diogo,
As vossas palavras são simpáticas, mas atrevidas e desnecessárias.
A individualidade é isso mesmo … só diz respeito ao próprio. Compreendo a vossa intenção, mas reprovo o vosso “carinho” público. Sou suficientemente crescidinho para pretender agradar a “gregos” e “troianos”; tão pouco me importa a “imagem”.
As vossas intervenções valem pelo sentido … mas foram “abusivas” ao revelarem factos que só a mim dizem respeito.
Estive para me “zangar” com os dois … seria um erro. Afinal não me posso dar ao luxo de perder tão “inflamados” defensores e Amigos.

C.F.

vitorino almeida ventura disse...

Não conheço pessoalmente a Carlos Fiúza mas fico agradado quando há quem veja que ele dá mais trabalho a ler do que eu, pelo volume e compactação de conhecimentos. Fico contente pela sua transmissão... Pelo menos, a mim, mesmo quando em revisão da matéria há muito dada, que abandonei o Latim nos bancos da Faculdade.

O ataque às suas fontes, aquele, já me parece bem ridículo, pois deveria ser acompanhado com a respectiva prova. E que mal teria, se não fosse na Escola, mas na Web, buscar o saber? Se é autêntico... Fosse uma cópia sem espessura, aí sim, mas quando se ataca (aprendi com os clássicos, não esqueço) deve atacar-se de frente.

Ab.,

Vitorino Almeida Ventura

Anónimo disse...

Caríssimos:

Não me sinto nada confortável com todo este ruído de fundo que despoletei, ainda que involuntariamente.

Por favor, digamos como o meu querido amigo Luigi:
- Finito! In bocca chiusa non entrò mai musca.

Carlos Fiúza