“Esta é a ditosa Pátria minha amada” – disse o Poeta.
“Esta é a ditosa Língua nossa amada” – poderemos nós dizer em eco.
E poderemos porquê?
Poderemos, porque nesta nesga de terra que o oceano beija, desde o afago primeiro à Europa da luz do Espírito, pátria é língua, e língua é pátria.
Um povo se espraiou um dia na conquista de terras que ao pé do mar e ao longe o rodeavam: o povo do Lácio, os Latinos.
Trouxeram os Latinos sua voz consigo, porque o dom natural da fala acompanha o homem onde quer que ele vá.
E mesmo se não falar a boca, falam os olhos, os seus gestos, ou o seu coração, altar da alma, e deus do corpo.
Até aqui, à Lusitânia, onde moravam homens mais pastores do que guerreiros, os Romanos trouxeram com a força do domínio bélico a sujeição dos habitantes iberos.
À luta corpo a corpo sucedeu a luta voz a voz, palavra a palavra.
E assim o latim vulgar, que as bocas romanas traziam até à Hispânia Ulterior, onde se situava a Lusitânia, esse latim venceu os falares iberos; mas na luta com eles travada, o latim vulgar recebeu influências locais, porque diz o povo, e com razão, que “quem vai à guerra dá e leva”.
E assim, embora vencedor, o latim recebeu a marca do povo da Lusitânia, de cunho étnico inconfundível.
“Esta é a ditosa Pátria minha amada” ...
Porque a Lusitânia foi a pátria da nossa pátria, a terra patrum de Portugal.
“Esta foi Lusitânia”, como o Poeta diz, e nela de Portugal moravam “os íncolas primeiros” …
Voz dos Lusitanos em união com a voz dos Romanos! …
Essa foi a nascença da nossa bela menina: a Língua portuguesa, a Língua da pátria da nossa pátria.
Parafraseando o Épico, direi:
“Esta é a ditosa Língua nossa amada” ...
... a que proveio da modificação do latim na expressão ibero-romana da Hispânia Ulterior.
Começou, portanto, rude a vida da menina Língua portuguesa …
Deram-lhe o ser as vozes dos soldados romanos e as vozes dos pastores da Lusitânia.
Talvez por isso (desculpai a minha imaginação) a Língua ganhou no berço o doce cantar da frauta pastoril e a energia dos homens castrenses.
E como a Lusitânia era enigmática, na nossa Língua ficou para sempre um ar de mistério … o mistério da montanha.
“Esta é a ditosa Língua nossa amada” …
Passa o tempo …
... vem a consciência linguística luso-galécia ...
.. ... e ao falar galécio-português, prolonga-se até ao século XIV com expressão artística no lirismo peninsular!
E é então que esta menina, a ditosa Língua nossa amada, beija sua irmã, a língua galega, despede-se dela ao afago do lirismo nostálgico, e procura noivo …
- O noivo é Portugal!
A menina que nascera na Lusitânia, esta nossa Língua bem amada, vem na boca dos homens de armas que limpam a faixa de Portugal da algaravia mourisca.
… E a Língua casou com Portugal. Mas quem foi esse Portugal?
“O Reino Lusitano …"
“Onde a terra se acaba e o mar começa …”
E o mar desafiou Portugal …
... e Portugal aceitou o desafio! ...
E o mar falou a linguagem brava das tempestades e a linguagem meiga do céu azul como espelho do que lhe fica por cima …
E o mar deixou marcado na Língua portuguesa o tom rude das procelas e o tom suave das águas tranquilas …
E o mar se ofereceu, como flor que se oferece a mulher …
... o mar, pedindo licença a Portugal, ofereceu à Língua Portuguesa a delicada flor da Saudade,
....a alma das distâncias por onde Portugal andou em andanças mil ...
........ e a oceanicidade!
Se Portugal é a nossa pátria, também a Língua é muito nossa;
... a voz de Portugal foi a todos os cantos do Mundo falar civilização aos povos que a não conheciam.
Mas a Língua portuguesa não se ficou no engenho das conquistas …
... conseguiu ainda mais! ...
... Conseguiu a arte de um Poeta grande entre os maiores do Universo: Camões!
... E a arte é de certo modo chave que abre espíritos cultos.
A universalidade de Camões, como expressão épica da universalidade do Portugal descobridor, essa universalidade épica do Português, trouxe à menina que nascera entre pastores e soldados, trouxe à Língua portuguesa a educação de uma Língua culta universal.
E o mar fez-nos a Língua universal! ...
E a voz do Poeta deu grandiosidade àquela que já conquistara o universo.
"Esta é a ditosa Língua nossa amada" ...
- símbolo imorredoiro da presença da pátria nas terras que descobrimos, voz do Poeta cantor de tamanhas glórias.
…
- e a nossa Língua foi com Portugal descobrir a Terra, e por ela um Poeta cantou as glórias de Portugal no Mundo!
...
E Portugal, pequenino, tornou-se grande pelo esforço que a História regista …
...
- e deixou traços pelo Mundo que descobriu!
E desses traços, o indelével é a Língua portuguesa, com a qual ainda se reza no Oriente, com a qual em plagas e ilhas da Ásia se exprime a vida quotidiana em muitos aspectos.
“Esta é a ditosa Língua nossa amada!” ...
..... Esta é a ditosa Pátria nossa amada ... em Voz!
Carlos Fiúza
7 comentários:
Belo texto sobre as origens,o percurso,as influências que ditaram a força da língua portuguesa.
JLM
Excelente artigo que revela um conhecimento da Língua Portuguesa fora de série.
Mariana
O que vai extra_
ordinário na sua análise é ver a Língua, numa construção pro_
fundamente clássica como um combate (deixe-me acrescentar: que os vencidos venceram, pois os pastores Lusitanos acabaram por, falando mal, dar ao latim a feição das pedras)... E o mar que nos entrou pela língua, como na "Rebentação" de Luis Miguel Nava: «o mar, bata onde ele bater, é uma decalcomania que não podemos arrancar sem que atrás fique o nosso corpo em carne viva».
Ab.,
Vitorino
Com muito nível. Parabéns!
Para mim, é sempre agradável ler uma dissertação s/ a nossa Língua. E se ela for de nível e de oportunidade, como esta aqui presente, tanto melhor.
Afinal - apetece-me acrescentar - (com a permissão de Carlos Fiúza),pelo espírito universalista e humanista do Renascimento, a época era das grandes epopeias, a exemplo de "Os Lusíadas", a única que ficou, entre numerosas outras escritas em Língua Portuguesa. E, já agora, ficou e foi largamente imitada ao longo dos séculos, tanto em Portugal como no Brasil. Mas é sempre curioso observar que, se os "Os Lusíadas" tiveram duas edições quinhentistas, o mesmo ocorreu com as "Rimas", embora os textos líricos fossem de publicação póstuma, ao contrário do que se pasou com a monumental epopeia camoniana de exaltação da nossa Língua e dos "nossos traços pelo Mundo". Esta é, realmente, "a ditosa Pátria nossa amada... em Voz"... dentro de NÓS!
Os meus sinceros parabéns para C.F.
h. r.
Ainda bem que estudei latim...
Anónimo
Só que o Latim no Ensino não foi para todos. Pois se assim não fosse não se via a "...lingua Portuguesa tão mal tratada..." dixit Padre Armindo.
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