José Saramago – o homemEra uma vez um homem (já não é, já morreu) que nasceu em 1922, num lugarejo chamado Azinhaga, a quem puseram o nome próprio de José (como o pai) e o último apelido de Saramago, alcunha ou apelido de família, porque era comum nesse tempo as pessoas não terem um nome completo tão bem definido como agora. Sorte a dele, porque, de contrário, teria ficado conhecido apenas por José de Sousa.
Este “Saramago” é o dedo do destino a salvá-lo de ter um nome corriqueiro, como a “Sócrates”, este vocábulo o salvou de ter um nome mais banal.
Pois este Saramago, ao que tudo indica, veio ao mundo, dotado pelos pais ou por Deus (nós não somos todos dotados da mesma maneira) de uma inteligência, uma força de vontade, um génio, uma perseverança, uma capacidade de trabalho, um feitio, uma teimosia, fora do comum. Apetrechado destes atributos, meteu-se à vida.
Nasceu num lugar recôndito, mas o pai conseguiu fazer-se polícia (ou fizeram-no, talvez por não ser burro, ser bem comportado e ser talvez salazarista – conditio sine qua non). E, em virtude disso, o pai rumou a Lisboa, para onde mais tarde levou a família. O rapaz, a princípio, não se portou mal: estudou o que pôde ou o que o mandaram estudar e terá sido talvez (nos meus juízos guio-me pela probabilidade mais forte ou pela maior verosimilhança) salazarista como o pai e como eu próprio fui até aos 16 anos.
Mas ao rapaz, chegado a uma certa idade, deu-lhe (quem houvera de dizer) para começar a ler, a ler, a ler, e nunca mais parou. E, ainda mais raro, começou a interrogar-se (e a interrogar os outros) sobre tudo o que lia. Foi irreverente, teve vários ofícios, e um dia (com toda a probabilidade) começou a ler o Soeiro Pereira Gomes, o Alves Redol (como ele, do Ribatejo) e começou a acreditar num paraíso (para todos) na terra, já que não consta que tenha até aí pensado muito num paraíso (para todos) num outro mundo (celestial).

A certa altura fez-se membro do partido comunista, por acreditar que com ele atingiria a felicidade para todos (na terra). Foi já como militante do PC que entrou na revolução de 25/4.
E, logo de seguida, mal nos habituáramos à liberdade, os comunistas pensaram chegada a manhã libertadora e igualitária para todos. E quiseram chegar lá através da via (ditadura do proletariado) consagrada por Marx e, sobre tudo, por Lenine, para não falar de Estaline, que era querido às escondidas e não querido em público.
Esta maré passou-a ele (Saramago) como director do D.N.. E deixou-se levar pelo forte querer de construir rápido um mundo melhor (nisto não era original, pois desde Cristo que os cristãos o tentam conseguir, aliando-se ao poder (Roma), constituindo eles o poder (Idade Média) e recorrendo a meios que nem ao Diabo lembram (a Inquisição deliciou-se com o fogo do inferno a queimar os hereges).
Pois Saramago, em 1975, bem aconselhado pelos camaradas legítimos (os trabalhadores manuais e não só), tornou-se sectário, expulsou os indignos do mundo novo, fez trinta por uma linha, até que ele próprio foi expulso. Ainda lutou no Alentejo pelos desígnios anteriores: trabalhou numa UCP, conversou, conviveu, delirou. E isto numa altura em que os ventos já apontavam fortemente noutra direcção.
Caíu em si, isolou-se, leu, estudou, percorreu o país, e decidiu fazer-se escritor (aquilo que havia escrito até aí já lhe dava alguma esperança de sucesso). E começou por contar a história dos alentejanos, com quem convivera tanto tempo, num estilo na esteira de Soeiro Pereira Gomes, de Alves Redol e tantos, tantos outros, que tiveram as suas primícias literárias no chamado neo-realismo.
E não é que fez uma obra tão bela (literaria e tematicamente) que até a Câmara de Lisboa (de Cruz Abecassis ) lhe reconheceu o mérito e lhe deu um prémio? Escreveu logo de seguida “O Memorial do Convento” e a aceitação geral foi excelente.
Curioso: - num país ortodoxo, conseguiu impôr-se com uma escrita heterodoxa. E continuou a afirmar-se comunista, numa teimosia (ou coerência) próprias de um Salazar, um Hitler, um Cunhal, um Estaline.
Mas a sua esperança num mundo igualitário esfumava-se a cada dia que passava: - a derrocada das “democracias” de Leste, a agonia de Cuba, a viragem para o capitalismo da China, o extremismo da Coreia do Norte.
E então começou a procurar outra via: o Cristianismo e a sua majestática organização, a Igreja Católica. E que viu ele? - O Papa e os cardeais vestidos de ouro, apoiados embáculos de ouro, com cruzes de ouro ao pescoço, vestidos de modo inteiramente desadequado dos tempos actuais. Além disso, passam o tempo com rezas, ladainhas, persignações, julgando que Deus gosta dessas lenga-lengas, desses rituais, esquecendo-se que Este talvez preferisse que a Ele se chegasse pelo

amor entre todos.
Pensava que a máxima comunista – de cada um segundo as suas capacidades a cada um segundo as suas necessidades - pudesse ter uma versão cristã, através do espírito de dádiva e de abnegação, que são indubitavelmente apanágio do Cristianismo.
Desiludido, deixou-se de intermediários e questionou directamente Deus e a sua doutrina.
Mas encontrou uma parte dos livros santos que lhe provocou muitos engulhos: o Velho Testamento, onde ele via um Deus que infundia medo, mais que amor, que agia a seu bel-prazer, do qual os humanos tudo aceitavam por Deus poder fazer o que lhe desse na real gana.
E então Saramago concluiu: - Deus, se Tu és isto, então desculpa, não existes. Nós somos apenas, como Tu dizes: - pó, terra, cinza e nada.
E, nesta indagação e luta, morreu. Afirmou-se sempre comunista por aquela dita razão cega da coerência, porque quis continuar a acreditar no paraíso para todos, para não dar parte de fraco e porque não queria ser considerado um arrependido.
E optou por aquilo que é terreno e passageiro, não eterno. Optou, porque, como dizem os cristãos e dizem os existencialistas, o Homem é livre e, sobretudo, livre de decidir.
Decidiu mal, Saramago? Se Deus existe, Deus já lho disse. Porque só o juízo de Deus interessa, não o de homens banais como somos todos nós (ainda que alguns sejam Papas, Cardeais, Ministros ou Secretários).
João Lopes de Matos