A “santa terrinha”, onde cada qual nasce, nem sempre dá o pão de que o corpo necessita. Quando esta insuficiência se verifica, muita vez o natural de uma terra vai ganhar a vida a outra terra, próxima ou distante, consoante os casos. Evidentemente, a migração pode ser individual ou coletiva. Assim, um portuense pode vir para Lisboa trabalhar e um lisboeta pode ir para o Porto granjear o sustento e, claro está, em infindáveis levadas e vindas, se trocam pessoas e populações entre umas terras com outras. Acontece, por vezes, que certas terras ou certas regiões recebem (ou recebiam) amiúde largos contingentes de trabalhadores, quer por já de antemão os buscadores do trabalho saberem que não é em vão sua procura de tarefa e de sustento, quer porque as tradicionais qualidades de umas gentes trabalhadoras são conhecidas, apreciadas ou necessitadas nas terras ou na região recetivas.
Era o caso, por exemplo, dos ranchos migratórios que vinham de Aveiro e de Coimbra trabalhar para a região do Sado, onde eram precisos para a faina da cultura do arroz.
Eram conhecidos por “caramelos” esses obreiros rurais que vinham dar a sua contribuição operosa aos arrozais do Vale do Sado. Se quisermos outro exemplo, aí o temos naqueles trabalhadores beirões que, principalmente de Arganil e redondezas, procuravam as lezírias e os campos do Sul do Tejo para qualquer ocupação que lhes desse o ganha-pão.
Eram os “barrões”, nome por que nos ambientes ribatejanos eram conhecidos os beirões migradores.
- “Barco parado não faz viagem” - costuma dizer-se, e bem facilmente se compreende que, nesta viagem que é a vida, o barco do trabalho tenha de andar de um lado para o outro, à procura do pão onde ele estiver.
Não há na terra? Busca-se noutro lado. É o que faz quem precisa de ir “esgravatar” a vida fora da terra-mãe.
E assim surgiram os “caramelos”, os “barrões”, os “ratinhos”… E até o nosso grande Gil Vicente aproveitou os “ratinhos” da Beira como um tipo característico de simplório com laivos de esperteza.
“Muitos ratinhos vão lá
De cá da serra a ganhar, E lá os vemos a cantar
E bailar bem como cá…” Por aqui se vê que, já no tempo de Gil Vicente, era popularíssimo o chamadoiro de “ratinhos” para os beirões que iam procurar trabalho aos campos do Alentejo e de parte da Estremadura, sobretudo em tempos de colheitas de trigos, e vindos de lá da serra. O intercâmbio das gentes rurais com as gentes citadinas necessariamente causa ensejos de manifestações de superioridade ou de pseudo-superioridade entre os da cidade e os de fora. E então, amiúde, os vaidosos urbanos pegam de acoimar os campónios de inferioridades várias, supeditando-lhes nomes depreciativos.
E assim nasceram os “pategos”, os “labregos”, os “labroscas” e até os “saloios”, etc.
- Ah! Grande “matarroano”!
Também acontece que, em lugar de um nome, se recorra a uma locução, e então criam-se ditos, como - ele veio lá “das berças”, veio da “Parvónia”...
Deixei para o fim um termo muito empregado na capital - “saloio”. “Saloio” tirou o nome do árabe açhroii, isto é, do campo, de fora da povoação, camponês. Há, pois, a oposição entre o da cidade e o de fora dela; e daí passou ao significado de desdém dos urbanos para os do campo. No fim deste divagar, inspirado nas “trocas” e nas “andanças” populacionais, e no artigo de JLM (Desenvolvimento e Emprego), não quero deixar de dizer que, apesar das ironias, dos despiques, dos motejos e das depreciações das gentes das cidades ou das terras e regiões para onde vão (ou foram) trabalhar os “ranchos” ou os indivíduos migradores, uma coisa é certa: todos são irmãos no mesmo esforço do ganha-pão!
E muita vez os de fora vêm não só dar trabalho colaborante, mas trazer a própria Vida.
“Sam, capelão de um fidalgo
Que não tem venda nem nada; Quer ter muitos aparatos
E a casa anda esfaimada; Toma ratinhos por pajens,
Anda já a coisa danada.” (Gil Vicente, in “Farsa dos Almocreves”)
Carlos Fiúza
P.S. Eu próprio fui um trabalhador “migrante” (num Mundo sem fronteiras, como a minha casa). É verdade que um “migrante” de luxo (se o quiserem) … mas migrante!
3 comentários:
caramelos”, os “barrões”, os “ratinhos”…
“pategos”, os “labregos”, os “labroscas” e até os “saloios”, etc.
- Ah! Grande “matarroano”!
Caro Carlos Fiúza
Como sempre a estória dos sem estória que fica para a Hist´ria
uma maravilha .
A grande maioria são trabalhadores honestos e ciosos das suas origens
vão ganhar riqueza fora, com enormes sacrificios, para desenvolveram a sua própria terra e dos seus .
Infelizmente existem as excepções..
os que ficam deslumbrados com as casas muito altas, as lampadinhas todas acesas, as insinuantes e bem cheirosas(por fora)teen agers(algumas bem entradas), as loucas noites nos bordeis, o bulício , o barulho, a confusão fá-los esquecer
tudo e todos, inclusivé aqueles que neles tão orgulhosamente neles confiaram e .. até votaram... renegando com vergonha as suas origens pois quando lhes perguntam de onde são .. respondem com voz meio parola meio efeminada:
-De CASCAIS!!!!
e quando regressam á aldeia é para vender as leiras que os pais, avós etc.. com tanto trabalho e suor conseguiram .. para ele..para poderem pagar as prestações do novo carro e os caprichos da sua nova e voluptuosa esposa!!!!..
Uns serão ratazanas outros passarão a ser ratos.. fácilmente comidos pelos gatos ..
cumprimentos
mario
Não sou de elogios fáceis.Mas,perante este artigo,não me contenho:belo,admirável.
Merece um redondo e grande "20".
JLM
Sim, aqui corroboro, por inteiro, a avaliação de JLM e, em sequência, tenho para mim que, a mais sublime migração de nós próprios, é a CRIATIVIDADE!
h.r.
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