Na história que conta a batalha pela sua sobrevivência política, José Sócrates está disposto a fazer tudo. Mas o que não fez nos últimos dias é tudo menos irrelevante.
Surpresa não é uma palavra que se possa adequar às quebras de lealdade política e institucional que o primeiro-ministro protagonizou. Está na sua natureza decidir sem dar explicações, contra tudo e contra todos, enquanto finge abertura ao diálogo, sentido de Estado e consciência das responsabilidades que carrega sobre os ombros. É sabido que Sócrates se auto-intitulou como "animal feroz" mas o que alguém já lhe devia ter explicado é que há cargos que não se compadecem com a lei da selva.
Depois de ter esbanjado tempo e recursos na negação da crise para que Portugal caminhava a passos largos, José Sócrates empenha-se agora num único objectivo: evitar que a ameaça de insolvência que pende sobre o País seja resolvida com um pedido de ajuda ao FMI. Um assunto que devia ser tratado como matéria de Estado, e com a necessária frieza, está transformado, há longos meses, numa questão pessoal. E o plano em que o primeiro-ministro se colocou leva-o a esquecer-se de compromissos com quem lhe deu a mão, assim como o cumprimento de deveres inescapáveis no quadro daquilo que é o normal funcionamento das instituições democráticas.
Ir a Bruxelas prometer medidas adicionais de austeridade em troca da definição de um esquema de apoio europeu que contorne a necessidade de chamar o FMI é legítimo. Fazê-lo sem falar com o parceiro político que respondeu aos apelos de estabilidade em fase de crise aguda já é arrogância e desprezo. Fazê-lo, também, sem prestar quaisquer contas ao Presidente da República é uma declaração de guerra, leviana, inútil e, ainda para mais, contrária aos objectivos que Sócrates diz perseguir.
Concentrado apenas em conseguir sair da embrulhada em que se enfiou e para onde conduziu o País, o primeiro-ministro aposta tudo em deitar para cima das costas alheias o fardo da responsabilidade por uma crise política que não consegue disfarçar que até deseja. E parece ter o discernimento de tal forma obnubilado pelo futuro da sua carreira política que foi capaz de se esquecer de um simples facto. Ir comprometer-se com os parceiros europeus sem poder dar garantias de dispor de condições políticas para aplicar o novo pacote de decisões que vão espremer o pouco que ainda sobra foi o melhor caminho para arrasar com a microscópica credibilidade de que Portugal desfruta actualmente.
Na sua original conjugação entre o Calimero vítima das mais tenebrosas conspirações e o Dom Quixote que se debate contra moinhos de vento, José Sócrates gosta, de vez em quando, de expressar a sua angústia por se achar sozinho a tentar puxar por Portugal. De quem é capaz de produzir estes comoventes lamentos, esperar-se-ia que procurasse apoios, em vez de hostilizar. De quem faz estas declarações destinadas a inspirar piedade nos corações mais sensíveis, esperar-se-ia cabeça fria e cuidados redobrados. O espectáculo dos últimos dias não teve nada a ver com isto. Pelo contrário.
José Sócrates isolou-se porque acha que tem proveitos a retirar se for derrubado. Pouco lhe importa se a forma como quer quebrar arrastar o País para o precipício. Sócrates quer sobreviver sozinho mas, se não o conseguir, quer cair acompanhado. E este é o mais grave problema que Portugal enfrenta. Jornal Económico
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