quarta-feira, 2 de março de 2011

Daqui e dali... Carlos Fiúza

Símbolos, imagens e figuras

Todos quantos se interessam pela arte expressional escusam de se esfalfar a discutir transcendentes problemas de estilo, em ordem a descobrir qual a forma preferida para se traduzir o que se passa.
O remédio é simples - basta aprender no mecanismo das frases populares os verdadeiros segredos da expressão.
Ditos de todos os dias, de todas as horas, de todos os lugares onde se faz ouvir a fraseologia criada pelo génio verbal do povo, são excelente escola de arte da palavra.

Ao preparar-me para coligir estes apontamentos, uma “figura” me assaltou a mente:
- “Anda daí depressa, rapariga. Vê se te mexes. És mesmo uma morte em pé!”
Este “dito” recordou-me outra dição portuguesa, notável pelo arrojo da imagem, e de grande poder expressivo:
- “És boa para ir buscar a morte!”

Na língua portuguesa a fraseologia é dotada de uma grande variedade de processos de imaginação. São muitos os valores figurativos, e a todos os aspetos da vida foi buscar inspiração o génio expressivo do nosso povo.
Temos expressões e provérbios inspirados na observação da natureza, em usos e costumes, em filosofias práticas da vida, em todos os factos e ambientes que prendem a imaginação, a atenção, e traduzem a experiência que vem do Viver.
Para provar que assim é, não vou fazer, nem preciso de fazer, estendal de frases, ditérios, prolóquios, sentenças ou metáforas. Bastar-me-á comentar alguns casos, vindos ao meu espírito em acidental associação de ideias.
O olhar aspetos da natureza, o reparar em correntios factos, em frequentes situações - eis muita vez a fonte pura e simples da inspiração imaginosa.

Admire-se como deste facto bem simples - beber água, ou não a beber, por se desconfiar que é má - deste facto, repito, que pode ocorrer à beira duma fonte suspeita, ou ao pé duma toalha de água em sítio árido, forjou o povo uma dição admirável pelo símbolo transformador de situação física de encontro ou de presença de água, que se diz não beber-se, em situação moral de se ser obrigado a tomar resolução diferente. E com símbolo - “nunca digas: desta água não beberei” - se traduz imaginosamente um conselho de sábia prudência.
As relações de semelhança que o povo descobre entre o físico e o moral, o concreto e o abstrato quase sempre as sabe traduzir por meio de imagens, símbolos e comparações que pelo seu processo sugestivo, natural, claro e perfeitamente analógico bem podem servir de ensino à expressão artística dos mais elevados conceitos.
Admire-se, por exemplo, a propriedade com que se formula esta imagem de um dos mais conhecidos ditados do nosso idioma – “Quem semeia ventos colhe tempestades!”
Em primeiro lugar, note-se que “semear ventos” é já de si imagem feliz; mas a imagem ganha ainda mais valor porque se continua alegoricamente noutra, no mesmo plano, da simbologia agrícola, pois o semear intenta ao colher.
Mas, semeados os ventos, o que se irá colher serão tempestades.
A alegoria é modelar e perfeitamente ajustável à observação de que do semear do mal resultará o colher de mal ainda maior; do largar desenfreado do que tende para o rodopio de paixões resultará o entrechoque tempestuoso de situações violentas.
Note-se esta metáfora que a seguir pesco do linguajar de todos os dias; note-se como se caracteriza por uma natural, coerente e sugestiva analogia:
- “Não continues a pensar nisso, homem. É remar contra a maré”.
Não admira que um povo oceânico, como o português, haja em seu rol fraseológico muita dição inspirada na vida sobre as águas do mar, dição que nem sempre encontra paralelo nas outras línguas cultas.
Suponhamos um sujeito a buscar para si algo que a outros também interessa, mas que ele procura encaminhar principalmente em direção ao seu interesse pessoal.
A peripécia moral pode ser traduzida por esta dição magistralmente imaginosa - “Levar a água ao seu moinho”, paralela ao francês “faire venir l’eau au moulin”.
Ou, ainda - “Puxar a brasa à sua sardinha”.
Como se sabe, a imagem assenta na identificação dos elementos comparados.
Se alguém fala ou barafusta, prega verdades ou conveniências, e ninguém no ouve, a fraseologia popular fornece imagem precisa, expressiva, verdadeiramente plena de valor significativo - “Estar a bradar ou a pregar no deserto!”
Leve-se a ideia desta expressão à sua essência de significado, e aprecie-se-lhe a exatidão comparativa aplicada, a quem fala em vão, como aquele que em meio de infinita região despovoada se entregasse a vociferar de qualquer modo.

É, ou não, a fraseologia um belo e grandioso edifício desenhado pela imaginação genial do povo anónimo e a que os escritores vão dando grandeza com a sua arte, se ela não desdenhar desses esquemas da arquitetura expressional?

Carlos Fiúza

7 comentários:

Anónimo disse...

Neste texto bem "montado" (concebido), CF repete CINCO vezes o erro "DIÇÃO". De propósito? ou não? Apenas distração? Acontece-nos na "escritaria", não é?
Se CF estivesse em Carrazeda, teria todo o gosto em lhe oferecer o meu último livro "Mirandelês" (basta escrever Mirandelês no google, para verificar), com 302 págs (em co-autoria), que é pródigo na tipologia fraseológica a que alude neste seu texto, pois se encontra dividido em três partes: dicionário, ditos populares e apodos.
Continue a habituar-nos com os seus qualificados escritos.

h.r.

Anónimo disse...

Caro h.r.

"Olho vivo" não lhe falta!...Estou a ficar muito "transparente!...

Na verdade, o repetir CINCO vezes "DIÇÃO" é um exercício mental a que me habituei (para "lavar" a burrice inicial de "dicção").

Quanto ao seu livro(co-autoria) "Mirandelês", teria todo o gosto em o ler, uma vez que o "Mirandês" sempre me atraiu.

Assim, e seguindo a sua sugestão, irei consultá-lo ao Google.

Como tenho pesquisa pessoal sobre o "Mirandês", oportunamente voltarei.

Obrigado por "apreciar" os meus "devaneios".

Carlos Fiuza

Anónimo disse...

Atenção, não confundir Mirandelês com Mirandês! O primeiro refere-se a um falar local (localismo); o segundo refere-se à Língua Mirandesa, i. é, a segunda língua oficial portuguesa, como sabe.
É verdade que aprecio os seus "devaneios", por isso, continue (enquanto a gente devaneia, não se chateia...), não será?
h.r.

Anónimo disse...

Caro h.r.

Percebi perfeitamente a diferença.
Na verdade, quando me referia a ter pesquisa pessoal, queria referir-me à língua MIRANDESA, como diz o nossa segunda língua oficial.

CF

Anónimo disse...

À consideração de h.r.

Mirandês
Esse curioso falar raiano da região de Miranda do Douro, entre Portugal e Espanha, classifica-se, linguisticamente, e em relação ao português e ao espanhol de codialeto.
Codialeto é o dialeto que forma com outro ou outros dialetos uma unidade linguística.
É um falar popular especial, que muito se distanciou das línguas comuns. Tal distanciamento pode dar-se por condições da natureza histórica ou meseológica, isto é, de ambiente.
“Nas terras de Miranda, de Guadramil e de Rio de Onor, segregadas do convívio do resto de Portugal (e de Espanha), vivendo lá ao canto de Trás-os-Montes vida isolada e em condições de existência muito particulares, foram apartando os codialectos que ainda hoje lá existem.” (Cf. Ribeiro de Vasconcelos, Gramática Histórica, pag. 21.)
O mirandês é, de facto, um amálgama de vocábulos portugueses, espanhóis e outros, muitos ainda do latim popular. Isto porque as condições meseológicas sobreditas não deixaram que o dialeto acompanhasse o progresso do português e do espanhol.
No esquema dialetal português, nós encontramos a língua românica-lusitânica dividida nos seguintes codialetos, afora a língua portuguesa - galego, mirandês, riodonorês (o transmontano falado em Rio de Onor) e guadramilês (também dialeto transmontano de Guadramil).

Carlos Fiúza
P.S. Por favor, corrija se estiver mal.

Anónimo disse...

Caro Carlos Fiúza,

primeiro, peço desculpa por só agora responder, mas tenho estado ausente.
Quanto ao Mirandês, quem sou eu para o corrigir? Em minha modesta opinião, CF acentua o essencial sobre esta língua, como veremos a seguir. No entanto, tenho comigo os "Estudos de Philologia Mirandesa", do (gigantesco) José Leite de Vasconcellos, com prefácio do ilustríssimo (cidadão honorário de Miranda) António Maria Mourinho, da Academia Portuguesa da História e de quem tive o gratíssimo prazer de ter sido seu aluno em "Estudos Ibéricos" (mestrado em antropologia), passo a transcrever, ipsis verbis, algumas breves passagens a propósito deste assunto:

"a origem do mirandês é o latim (...) ninguém poderá duvidar disso. Só os pyrrhonicos. Mas os pyrrhonicos estão fora de combate, porque as armas dos combates scientíficos são os factos e a razão; e os pyrrhonicos nem se submettem a esta, nem acceitam aquelles. Por tanto, non ragiogiam' di lor...";
(...)
"o mirandês é pois uma das evoluções do latim; digo uma, porque a lingoa latina evolucionou de diversas maneiras, conforme os países, tornando-se aqui mirandês e português, alli gallego, asturiano, hespanhol, catalão, mais além gascão, provençal, francês, valão e noutras direcções ladino, sardo, italiano, romeno (...) logo, o português não vem do latim, mas, pelo contrário, é lenta transformação do latim, é latim alterado. O mesmo se applica ao mirandês e a todo o romanço. (...) A respeito da origem latina do mirandês surgem dois problemas:
provém o mirandês directamente do latim vulgar trazido na época romana para a Terr-de-Miranda, e é por isso, autochtone, transmitido lá, sem solução de continuidade, desde essa época até hoje?
ou provém de um idioma vizinho, importado, já depois da época romana, para aquella região? (...) Resta-nos pois o segundo problema, cuja solução só pode ser affirmativa. O mirandês há-de considerar-se não só como continuação do latim vulgar que se fallou na epoca romana no territorio correspondente à Terra-de-Miranda, mas como um dos idiomas do systema linguistico do Noroeste da Iberia."
(...)
QUANTO AO CODIALECTO:
"A questão do nome não faz muito ao caso para a comprehensão historica do mirandês; no entanto, co-dialecto é porventura a melhor das designações. (...) COM A EXPRESSÃO CO-DIALECTO PORTUGUÊS QUERO SIGNIFICAR QUE A UNIDADE LINGUISTICA CHAMADA MIRANDÊS GOZA DE CERTA INDEPENDENCIA GLOTTOLOGICA, a bastante para que ella ocupe lugar entre as fallas de Hespanha e as de Portugal, e não seja mero dialecto nem do Português nem do hespanhol, mas que ao mesmo tempo, em virtude principalmente de causas de ordem GEOGRAPHICA E SOCIOLOGICA, está mais subordinada à lingoa nacional de Portugal do que à de hespanha.
(...) a noção de co-dialecto attribuida ao mirandês é clara. Não lhe posso chamar dialecto (a não ser em relação ao latim) porque em tal caso ficavam sem nome conveniente as particularidades de lingoagem do resto do país (...) Logo, o mirandês não é propriamente português. Pelas razões expostas acima, é idioma sui generis, muito vizinho d'este, e pode considerar-se co-dialecto."
E pronto. Por agora fico-me por aqui.
As mais cordiais saudações para Carlos Fiúza.

h. r.

Anónimo disse...

Caro Helder Rodrigues

Obrigado pelos esclarecimentos. Na verdade, o que transcreve complementa o que "pensava" saber sobre o Mirandês.

Abraço
CF