quinta-feira, 21 de julho de 2011

Daqui e dali... Carlos Fiúza

Tradição e linguagem (a vida das palavras)

É um oceano imenso o estudo da linguagem. Mil vidas que um homem tivesse não lhe chegavam para considerar os milhentos aspetos da vida das palavras.
Agora mesmo peguei na pena, ou seja neste objeto ao qual também chamo caneta, e, fixando a atenção nestas duas palavras - pena e caneta, resolvi aceitar a inspiração para um tema, a que poderia dar o título de nomes de coisas velhas em coisas novas.
Exemplos? Há-os à farta. Podemos continuar com a pena.
Os nossos antepassados utilizavam as penas das aves para escrever, especialmente as grossas penas de gansos, cisnes e corvos. Depois de convenientemente aparada, a pena de pato servia otimamente para escrever.
Hoje recorremos às canetas de tinta permanente (ou às esferográficas), que bem diferentes são das velhas penas, e até as próprias canetas de aparo, que representavam progresso em relação àquelas, foram substituídas pelo moderno objeto.
No entanto, o nome de pena resiste, e muitos de nós o empregamos, esquecidos do sentido etimológico. O esquecimento deste não é recente, pois já nas escolas há muito se diz, por exemplo - a pena. Pena que não é de pena, mas se chama pena.
O termo “pena” ganhou há muito o sentido figurado de estilo e até de escritor - “fulano é uma boa pena”, isto é, escreve bem.
E caneta?
Caneta vem de cana, da qual é um diminutivo. Hoje não escrevemos com as “caninhas” ou “tubozinhos” em que se encaixava o lápis ou a própria “pena de escrever”.
Perdida a ideia inicial, muito se aplicou a caneta (ou seja a “caninha”) com referência aos tubos metálicos, por vezes com cabos de madeira, osso, marfim, etc.
Também no latim calamus era cana e passou a nomear o objeto com que se escrevia, quando feito de cana, e até quando já o não era.
Com as canetas escrevemos numa folha de papel.
Folha - cá está outra palavra designadora do que foi e já não é.
A folha da árvore foi utilizada para nela se escrever. Em nossos dias já não se pensa na folha da árvore, porque se escreve no papel. Mas a palavra antiga resiste, e revela sua origem a quem nela atentar. O mesmo acontecera, antes, no latim, onde “folium” era não só a folha da árvore, mas também a folha (por exemplo, a da palmeira) em que se escrevia.
Ergui agora os olhos do papel e pousei-os no candeeiro.
Calcule-se: no candeeiro elétrico!
Que era um candeeiro, em tempos idos? Era um utensílio de candeia (pois candeia + eiro deram candeeiro), e candeia, simples vaso de bico por onde saía torcida, parte da qual se embebia, por exemplo, em azeite.
O candeeiro já era, em relação à candeia, um progresso que a própria derivação aliás traduzia.
Rodaram os tempos, aperfeiçoaram-se os processos, e as mechas ou as torcidas, o azeite, o petróleo, os bicos das candeias e dos candeeiros não deixaram vestígios nestes aparelhos elétricos que são os candeeiros de hoje. No entanto, apesar de a candeia de tempos idos não nos vir à ideia ao olharmos para um candeeiro de nossos dias, lá está na palavra a marca de sua família.
Quero agora chamar a atenção para dois factos. O primeiro é que os velhos nomes podem, por metáfora ou por alguma relação comparativa, continuar a utilizar-se em novas modalidades de objetos do mesmo uso, embora de forma e processos diferentíssimos.
Assim, por exemplo, a palavra lâmpada, que nomeava vaso com óleo onde se acendia torcida, utiliza-se hoje no chamadoiro das lâmpadas elétricas. Mas (e este é o segundo facto que desejo apontar), note-se que o novo processo criou nova expressão ao idioma, por meio de mero “alargamento” semântico.
Nós dizíamos acender a luz com referência às lâmpadas antigas, aos candeeiros, etc. Hoje ainda dizemos isso. Porém, como surgiram os interruptores, também com eles veio novo dito - abrir a luz.
Quer dizer, nos tempos de hoje abrimos e fechamos a luz, abrimos e fechamos o gás, ou, então, acendemos e apagamos a luz, etc. De antes, apenas dizíamos acender ou apagar, porque não havia este “abrimento” de correntes elétricas… ou gasosas ou aquosas, como em abrir a água.
Aqui em cima da mesa, além da folha de papel, além da caneta e do candeeiro elétrico, está outra coisa que também me serve para prosseguir nestes pensamentos a respeito das extensões e translações de nomes velhos em coisas novas de nossos tempos.
Em cima da mesa tenho também os óculos de uso casual, irmãos dos que estão nos olhos para ler e escrever.
Óculos - eis uma palavra que serve para mostrar que o progresso científico precisa muita vez do regresso linguístico.
Ora, em latim, olhos era “oculi”.
O progresso criou, portanto, estas cangalhas dos olhos; mas a língua portuguesa regressou ao velho latim, e lá foi buscar aos oculi a chamação para elas. E esta mesma palavra “oculus” (no singular latino) regressa ainda mais ao primitivo sentido, quando, emprestada à ciência, refere o globo dos olhos, ao qual se chama globo ocular.

Em muitos outros aspetos da vida moderna poderemos ir descortinar aspetos da vida de outros tempos… os exemplos são infindos.
É só atentarmos…

Carlos Fiúza

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