sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Daqui e dali... Vitorino Almeida Ventura

Miguel Torga,
Orfeu do (nosso) Deserto


Estive pelo telefone a conversar longamente com o poeta Fernando Branco e soube que estivera com Fernando J. B. Martinho, um especialista em Miguel Torga, pelas comemorações do centésimo aniversário do seu nascimento. Torga que estava sempre a re_
nascer em São Martinho de Anta, que todo o ser ganha sentido por relação a um lugar — com uma aquarela duriense sobre os olhos, comparável, por exemplo, à oferecida aos habitantes de Ribalonga. Torga que foi buscar seu nome literário a dois grandes da Ibéria (Miguel... Cervantes/Unamuno) e a uma urze que apresenta como essencial _ seu apego à Terra. Mas desenganem-se os que acham que
tal apego se faz apenas a Trás-os-Montes — bastariam aqueles dois nomes para focar numa pátria ibérica de figuras, mitos, personagens... Tão longe de uma integração política nessa União Ibérica, criada ao século XIX, e a que hoje tantos gostariam de aceder, como num poema de valter hugo mãe, passados a limpo por uma máquina que (n)os fizesse espanhóis —, mas ao Alentejo, de uma depuração tão pacífica a que nos elevam seus montes, como ao Brasil: concedo que Torga chega ao Brasil e ao Alentejo (tão enamorado de Évora), por via transmontana. Não interessa aqui o quanto destestava o Minho — verde, verde, verde... As suas vinhas do enforcado, as suas ervas, os seus campos de milho.
O que me interessa aqui relevar pela sua relação diarística com Portugal, como refere Carlos Reis, é como via o Alto Douro (e nisso vai uma parte de Trás-os-Montes, repito: uma parte, que em Carrazeda se constituiria pela corda do Douro e do Tua)... O Douro, aprendeu o sociólogo António Barreto com ele, é todo-sofrimento: Sísifo, acartando canastras de 70 Kg, até ao alto da montanha... Pés descalços sobre o xisto que fervia... Mas que não tombavam nem a goles de aguardente... Nunca idílico, em quanta rudeza,
Sísifo, carregava andores, des_
carregava em honra de Baco! Crudelíssimo, como o abafador, numa eutanásia pressentida! E aquela história de duas aldeias, cujos padres marcaram a procissão à mesma santa, no mesmo dia (mesma hora) e eis que chegados ao lugar da adoração, os braços dos santos e os pés de cristo, até as lágrimas de Maria serviram para se mocarem uns aos outros! Como os Zíngaros, em Amarante, com outra banda, por via de se atravessarem primeiro (n)uma ponte! Mas
convinha saber por agora quantos dos conteúdos de Torga caíram já, folhas mortas, substituídos pelo suor oleoso de máquinas e tractores... No fundo, se a poesia se aguenta sem — tão marginal (como Torga assim se des_
considerava em relação à sua Coimbra, onde viveu e professou medicina), pois sem conteúdos ficam as competências e as técnicas: e, é sabido, tecnicamente não era tão evoluído, como Sophia para citar um exemplo seu contemporâneo. Sophia, que tão bem sabia o mar, onde ia buscar, segundo Armando Silva Carvalho — como é que era? — os momentos todos que não viveu... Então, o que fica dele-Torga?
Para Fernando Branco, uma natureza poética profundamente humana — posso dizer? —, de Orfeu Rebelde — tão anti-Horácio, contra, bem contra todo-bucolismo dos regatos nas planícies!
Eu diria que, no apesar da desertificação, Torga se poderá cada vez mesmo constituir — isso mesmo: uma voz poética, ela-mesma verbo... Encarna(n)do alma de Trás-os-Montes. Cada vez mais voz
não de um profeta no deserto, mas do próprio deserto (como um paraíso selvagem: salvo a vinha e o olival) que nos identificará um dia. (Esperando que
não, romanticamente, a uma infância perdida!).

vitorino almeida ventura

Post Scriptum: As suas leis de uma religião terrena — contra a do céu, pregada por tantos opinion makers —, dever-nos-iam remeter para viver de acordo com a natureza, onde cada um seja uma parte do respeito pelo Mesmo... no Outro. Que os blogues vieram mostrar isso mesmo — o fim (do pedestal) da Crítica, o início de uma (mais democrática) Opinião...

1 comentário:

vitorino almeida ventura disse...

Esclarecimento adicional: A minha vivência de Ansiães é a que Torga toma para o Douro, pela minha relação com o Pombal, e não a do reino maravilhoso com que se dirige em adoração a Trás-os-Montes...