sexta-feira, 2 de maio de 2008

Daqui e dali... João Lopes de Matos

Confissão

Eu, presidente da junta da minha aldeia, me confesso a vós, professor da escola da minha aldeia. Quão semelhante ao teu acho o meu fado, quando os cotejo.
Eu sempre cuidei da vida de toda a gente, como tu cuidaste dos meninos que te entreguei para que lhes ensinasses as primeiras letras.
Sei que tu ajudavas os pais a escrever cartas, aconselhava-los nas suas dificuldades, tratavas-lhes dos problemas junto da Câmara Municipal.
Mas eu ajudava-te em todas essas tarefas, mesmo sem tu saberes, à excepção das cartas (sempre tiveste mais jeito para isso do que eu. Confesso que sou mais um homem de acção).
Em muitos domínios, estabelecemos mesmo uma cooperação muito frutuosa: lembras-te de que, em entreajuda, conseguíamos ter as ruas da nossa aldeia sempre limpinhas, mais do que agora andam com o pessoal da câmara (se eu mandasse nesta, as coisas funcionavam doutra maneira, mas estou velho e já não posso pensar em altos voos).
Mas os tempos mudaram tanto! Agora já não há o respeito que havia! A ti mandaram - te embora porque só tinhas um aluno ,como se os pais não tivessem direito a um preceptor tanto quanto os reis! E as outras tarefas a que te dedicavas não eram importantes, não justificavam a tua permanência? Se bem que tu, ultimamente, já fazias tudo de fugida, já nem moravas cá e nem tempo tinhas para conversar comigo, desculpa que te diga.
A tua vida, porém, é a tua vida. Acabaste por te safar. Habituaste-te a outro sítio e já nem apareces nem dás notícias.
O pior é que começa a falar - se em fazerem o mesmo a nós. Não é justo. Sempre haveria que fazer, mesmo estando a morrer as pessoas tanto, que em breve não há ninguém (Vê lá tu que até o regedor já partiu, embora tivesse uma saúde de ferro, lembras-te?).
Do falar ao fazer ainda demora muito tempo (lembras-te do que aconteceu convosco?) e pode ser que eu possa ter a honra de morrer (bem velho, claro) no meu posto.
Aceita saudades minhas e reza para que tudo corra segundo os meus desejos.
João Lopes de Matos

1 comentário:

vitorino almeida ventura disse...

Dou-lhes os parabéns. Está um mestre no género epistolar. O único senão é o tom choradinho... Se não deixo de ouvir, ao fim, a canção "Adeus, mãezinha, vou partir...".

Mas, claro, faz parte da ironia. Pungente.

Vitorino Almeida Ventura.